sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Polis

Com efeito, no Politikos, Platão utilizando a classificação tripartida das formas de governo (um só a governar, ou monarquia; poucos, aristocracia; e muitos, democracia), logo distingue, em cada uma delas, as formas boas, das formas degeneradas, resultantes da corrupção.
Assim, dentro da monarquia, distingue a realeza da tirania; na aristocracia, entre a nobreza e a oligarquia; e na democracia, entre a forma moderada e a forma extremista.
É evidente que hoje o padrão não é a Idade de Ouro platónica e talvez já não possa aceitar-se que as formas boas são as que imitam ou copiam as antigas leis, consideradas como o único original verdadeiro.
Com efeito, talvez já não se utilize, como em Platão, o paradigma do que estava antes, nas origens, nem se considere a coisa perfeita como o que era anterior e a coisa degradada ou corrupta como o posterior, já não se diz que o anterior é igual ao superior e o posterior, igual ao inferior.
Hoje, o paradigma, isto é, a coisa eterna, não é a ideia, o eidos, essa coisa matemática, estável, eterna e auto-subsistente.

No tempo de Aristóteles, quando a polis ainda era uma democracia directa, tudo se resolveria considerando como limite ideal a observar para uma polis, a maior extensão possível da população e do território que coubesse nos limites do horizonte (que pudesse ser perspectivada facilmente através de um só olhar)[1].
Nos nossos tempo de democracia representativa e dos actuais meios de transporte e de telecomunicações, onde a praça pública tende a ser o écran, utilizando o mesmo sentido de medida, outras podem e devem ser as dimensões, mas idênticas têm de ser as preocupações.
Neste sentido, o antigo catedrático da London School of Economics, Harold Laski, referia que o problema central da política é o problema da autoridade e da liberdade, a tensão entre a soberania do Estado e a obrigação moral de resistir, porque o poder somente é válido quando recebe, daqueles que lhe estão sujeitos, a sua livre anuência à autoridade que procura exercer[2].
Da mesma forma. Alain salientava que o cerne da política estava na relação entre a resistência e a obediência: o cidadão pela obediência assegura a ordem; pela resitência assegura a liberdade, dois termos que não seriam opostos, mas sim correlativos, porque não há liberdade sem ordem e a ordem de nada vale sem liberdade, pelo que haveria que obedecer resistindo[3], porque um homem livre contra um tirano, tal é a célula da política[4], isto é, obedecer em corpo; jamais obedecer em espírito; ceder absolutamente e, ao mesmo tempo, resistir absolutamente[5].
Na mesma linha, Robert Dahl, considera que o dilema da democracia pluralista e o dilema geral da vida política está na relação entre a autonomia ou independência das pessoas e dos grupos e o controlo[6].
Voltando a Laski, poderemos, pois, dizer que a ciência política é marcada pela vida do homem na sua relação com o Estado organizado, tendo que ser Staatslehre mais Politik, porque uma verdadeira política é ... acima de tudo, uma filosofia da história[7].

A classificação de Edward Shills consta de Political Development in the New States. Comparative Studies in the Society and History, 1960. Para ele, as democracias políticas (political democracies) seriam caracterizadas pela diferenciação de funções e pela especialização das estruturas, tendo, de um lado, órgãos legislativos, executivos e judiciais, e do outro, partidos políticos, grupos de interesses e órgãos de informação.
As democracias tutelares (tutelary democracies) seriam marcadas pela concentração do poder no executivo, pelo apagamento do poder legislativo, pela dependência do poder judiciário e pela falta de alternância, apesar de se ter como objectivo conduzir o regime para a democracia política.
Quanto às oligarquias, estas poderiam ser de três espécies. As modernizantes (modernizing oligarchies), abrangendo os regimes ditatoriais que têm como objectivo proclamado o desenvolvimento económico; as totalitárias (totalitarian oligarchies), com regimes de partido único ou chefia personalizada, sem alternância e com imposição de uniformidade ideológica, como o fascismo, o nazismo e o sovietismo; as tradicionais (traditional oligarchies), onde a elite dirigente se recruta na base do parentesco e do status, assumindo geralmente forma dinástica e apoiando-se mais no costume, do que em qualquer constituição racional-normativa.
A classificação de Gabriel Almond e Bingham Powell, de 1966, mantem-se nesta linha, distinguindo entre sistemas primitivos, sistemas tradicionais e sistemas modernos.
Se os sistemas primitivos poderão ser segmentares ou em pirâmide, já os sistemas tradicionais assumem três formas: patrimoniais, burocrático-centralistas e feudais.
Mais complexa e a divisão dos chamados sistemas modernos. No ponto de chegada estão os sistemas modernos com infra-estruturas políticas diferenciadas, incluindo-se neles as cidades-Estados secularizadas com diferenciação limitada (caso de Atenas) e os sistemas modernos mobilizados, isto é, os que possuem um nível elevado de diferenciação e de secularização, subdivididos entre sistemas democráticos e sistemas autoritários. Entre os dois, surgem os sistemas modernos prémobilizados, com duas espécies, os autoritários e os democráticos.
Para estes autores, dentro dos sistemas democráticos, poderíamos ter forte autonomia dos subsistemas (v.g. o modelo norte-americano e o britânico), autonomia limitada dos sub-sistemas (v. g. República Federal da Alemanha e França na III e IV Repúblicas) fraca autonomia dos sub-sistemas (v.g. México)
Já nos sistemas autoritários, haveria que fazer as seguintes distinções: os totalitarismos radicais (v. g. URSS), os totalitarismos conservadores (v.g. Alemanha nazi), os autoritarismos conservadores (v.g. Espanha de Franco) e os autoritarismos em vias de modernização (v.g. Brasil da revolução de 1964).
Refira-se que há também uma leitura neomarxista do desenvolvimentismo, sob a forma de sociologia histórica do político, com destaque para Perry Anderson, Linhagens do Estado Absolutista [1974], trad. port., Porto, Afrontamento, 1984, Immanuel Walerstein, The Capitalist World Economy, Cambridge University Press, 1975, e Theda Skocpol, Estado e Revoluções Sociais.Análise Comparativa da França, da Rússia e da China [1985], trad. port., Lisboa, Presença, 1988[8].


Procura-se também a ligação com a economia, marcante nas teses de Anthony Downs, Economic Theory of Democracy, que levaram ao aparecimento das teses da chamada rational-choice, e à mais recente escola da public-choice, marcada pela obra de James Buchanan e Tullock, The Calculus of Consent, de 1962, que tiveram como precursor Joseph Schumpeter (1883-1950), para quem a democracia se aproximava da luta competitiva, nomeadamente por causa do método eleitoral. Escolas que acentuam a perspectiva do individualismo metodólogico na análise dos processos de decisão colectiva, criticando o holismo das escolas sistémicas e funcionalistas.
A perspectiva da degenerescência manifesta-se sobretudo na classificação das formas de governo constante da Politeia, onde se enumera uma escala que vai da polis melhor à tirania. Primeiro está a cidade do céu, o governo dos homens mais sábios e mais parecidos com os deuses que não está dependente da opinião popular; segue-se a timarquia ou timocracia, o governo dos nobres que procuram a honra e a fama, onde o início da degenerescência acontece quando os nobres se dividem num conflito entre a virtude e o dinheiro. No terceiro lugar desta escala descendente, está a oligarquia, o governo das famílias ricas, onde há uma potencial guerra civil com os pobres. No penúltimo degrau anterior à tirania, está a democracia, o regime da liberdade entendida como ausência de leis, onde se dá a vitória dos povos.
Em qualquer dos casos, a degenerescência é marcada tanto pela circunstância da destruição da forma de governo provir dos próprios governantes, onde os interesses económicos são a principal causa da desunião.
É dentro da polis melhor, da kallipolis, que Platão faz a célebre tripartição em três classes. Na classe superior, detentora das funções deliberativas, estão os guardiões perfeitos, detentores da sabedoria (sophia) ou razão, equivalente ao ouro. Na classe intermédia, onde domina a virtude da coragem (andreia). o elemento emocional, estão os guardiões auxiliares, equivalendo à prata; na classe inferior, onde domina a temperança (sophrosyne), o elemento do desejo e da concupiscência, estão os agricultores e os artesãos, a parte negociante que têm a função de obedecer, equivalendo ao ferro e ao bronze.
Quando directamente procura responder às formas de governo ou aos tipos de regime, Platão enumera cinco constituições, correspondentes a cinco almas, porque é forçoso que haja tantas espécies de caracteres de homens como de formas de governo[9]. São elas:

Kallipolis
É o governo dos homens mais sábios e mais parecidos com os deuses; é o mundo sem tempo das formas e das Ideias, a cidade do céu, onde se faz uma descrição idealizada a partir das antigas constituições de Creta e de Esparta; uma polis que não tem necessidade de leis, nem está dependente da opinião popular.
Timarquia
É o governo dos nobres que buscam a honra e a fama; os nobres já estão divididos ao contrário do que acontecia no estado anterior; a desunião é produzida pela ambição; o conflito é entre a virtude e o dinheiro.
Oligarquia

É o governo das famílias ricas; potencial guerra civil com os pobres; a cidade enferma em luta consigo mesmo; é uma forma de governo, onde o censo decide sobre a condição de cada cidadão; onde os ricos, por consequência, exercem o poder sem que os pobres nele participem [10].
Democracia
É o regime da liberdade ou da ausência de leis; nasce a democracia... quando os pobres vencem, matando uns ... banindo outros, e compartilhando com os restantes dos direitos de cidadania e dos cargos públicos em termos de igualdade.
Tirania
É o governo da violência e da coerção


A cada uma destas formas corresponderia, aliás, um certo tipo de homem. Cada uma delas passa-se dentro de nós, a partir da tensão entre a parte da alma que é dotada de razão e a outra a parte animal e selvagem[11]. Porque existe em cada um de nós uma espécie de desejos terrível, selvagem e sem leis, mesmo nos poucos de entre nós que parecem comedidos[12].
Logo, há que fazer coincidir cada regime com o tipo de homem, porque o homem tirânico é feito à semelhança da polis tirânica, o democrático da democracia e os restantes do mesmo modo[13].
Só pode, portanto, avaliar-se um regime como se avalia um homem, isto é, em em pensamento. E só deve avaliá-los quem, em pensamento, for capaz de penetrar no carácter de um homem e ver claro nele[14].
Haveria assim três espécies de homens, o filósofo, o ambicioso, o interesseiro, movidos, respectivamente, pelo saber, pelo prazer das honrarias e pelo lucro, dessa fricção é que surgiria a dinâmica dos regimes[15].
Segundo vários autores, nota-se nesta classificação um certo fascínio pelo regime de Esparta, especialmente na crítica à democracia ateniense, a mesma que condenara Sócrates à morte.
Julgamos que, mais do que a crítica à democracia, o que Platão faz é uma crítica à classe política que a dominava, marcada pelo facciosismo. Uma classe política onde primava a ignorância e a incompetência e que vivia da adulação das massas. Porque os cavalos e burros andam pelas ruas, acostumados a uma liberdade completa e altiva, embatendo sempre contra quem vier em sentido contrário, a menos que saiam do caminho[16].
Sobretudo, a falta de respeito pelas leis acabam por não se importar nada com as leis escritas ou não escritas, como sabes, a fim de que de modo algum tenham quem seja senhor deles[17].
O perigo deste modelo está na circunstância de na democracia nascer a tirania. Porque é do cúmulo da liberdade é que surge a mais completa e mais selvagem das escravaturas[18], porque o excesso costuma ser correspondido por uma mudança radical, no sentido oposto, quer nas estações, quer nas plantas, quer nos corpos, e não menos nas cidades [19].
Assim, na degenerescência democrática, cada um deixa de cumprir a sua função: louvam e honram em particular e em público os governantes que parecem governados, e os governados que parecem governantes[20]. Do mesmo modo, surge o professor que teme os discípulos e o velho que quer parecer novo: o professor teme e lisonjeia os discípulos, e estes têm os mestres em pouca conta; outro tanto se passa com os preceptores. No conjunto, os jovens imitam os mais velhos, e competem com eles em palavras e em acções; ao passo que os anciãos condescendem com os novos, enchem-se de vivacidade e espírito, a imitar os jovens, a fim de não parecerem aborrecidos e autoritários[21].
O antídoto proposto por Platão é o esforço filosófico, estético e poético. Era o aristocrata a antepor-se à ignorância e à incompetência dos políticos. Para evitar o aparecimento do protector que se transforma em tirano[22]. Para evitar que o povo, ao tentar escapar ao fumo da escravatura de homens livres, não caia no fogo do domínio dos escravos da escravatura de escravos que é a tirania[23].

Esta perspectiva vai ser mantida em Aristóteles e São Tomás que falam em três regimes puros (realeza, aristocracia e politeia-politia) e três regimes degenerados (tirania, oligarquia e democracia).
Aristóteles adopta, com efeito, um critério também complexo para a classificação das formas de governo, misturando elementos quantitativos e quantitativos, tentando determinar não só o quem governa (a forma imperii), mas também o como se governa (a forma regiminis), utilizando para o efeito um modelo simultaneamente dinâmico e normativista.
Para tanto, utiliza o critério do metabolismo, da passagem de um todo para outro todo, porque os seres nascem, crescem e morrem, onde a causa primeira de toda a mudança é uma causa interna, está situada nas suas própria parcelas.
Quanto ao modelo normativo, continua na senda de Platão, fazendo equivaler o melhor àquilo que é anterior e o pior, ao posterior, onde este é sempre uma degenerescência face àquilo que é anterior, considerado como o mais perfeito, onde os princípios da justiça constituem o padrão para a determinação do mal e do bem.
Aristóteles, se não adopta uma perspectiva filosófica, se procura ver as coisas políticas como elas realmente são, não deixa de adoptar uma postura normativista. Na sua pesquisa, contrariamente aos que adoptam uma atitude filosófica e não tratam de considerar o lado prático das coisas, ele que não quer nada negligenciar nem omitir, pretendendo pôr em evidência a verdade em cada caso[24].
Como ele próprio assinala, as coisas ... diferem especificamente[25]. Isto é, há hierarquia, entre aquilo que é anterior e aquilo que é posterior, dado que os dois não podem ser considerados como espécies do mesmo género, pelo que a sucessão anterior-posterior equivale à graduação melhor-pior.
Nesta base é que Aristóteles assinala que os regimes diferem uns dos outros em espécie, e que uns são anteriores e os outros posteriores, pois aqueles que concentram os erros ou os desvios são necessariamente posteriores àqueles que estão isentos de defeitos[26].
O anterior e o posterior não são pois o que está antes e o que está depois, em termos cronológicos, mas sim o que é melhor e o que é pior, em termos de cumprimento do bem. Logo aquilo que deve ser no futuro, é aquilo que é anterior, porque o anterior é aquilo que é superior, o que é mais perfeito.
Logo, para Aristóteles, há regimes bons e regimes maus, formas correctas e formas incorrectas. Os regimes que têm por fim o interesse comum, são de facto, formas correctas, de acordo com os estritos princípios da justiça; aqueles que, pelo contrário, não têm senão em vista o interesse pessoal daqueles que mandam são defeituosos e são todos degenerescências dos regimes normais, aqueles onde a polis é uma comunidade de homens livres [27].
 Só a partir daqui é que Aristóteles enumera os regimes possíveis, salientando que só sob formas correctas é que os que tomam parte na polis podem ser chamados cidadãos (politai) [28].
Seis combinações são então possíveis. Um só a mandar para o bem comum (basileus) ou no interesse próprio (tirania). Poucos e melhores para o bem comum (aristocracia) ou para seu interesse, podendo não ser os melhores (oligarquia). Grande número para o bem comum (politeia) ou apenas contra os ricos (democracia).
Com Políbio (201-120 a.C.) e Cícero, baseados no modelo da república romana, passa a defender-se, já não a kallipolis de uma Idade de Ouro, mas o chamado regime misto. Conforme salientava o primeiro, o governo da República romana estava refundido em três corpos, e em todos os três tão balanceados e bem distribuídos os direitos, que ninguém, ainda que seja romano, poderá dizer com certeza se o governo é aristocrático, democrático ou monárquico[29]. E com razão, porque se atendermos ao poder dos cônsules, dir-se-á que é absolutamente monárquico e real; e à autoridade do Senado, parecerá aristocrático; e se ao poder do Povo, julgar-se-á que é um governo popular[30].
Também Cícero, nesta procura do justo centro e da recta ratio, considera a res publica como a mistura da libertas do povo, da auctoritas do Senado e da potestas dos magistrados, essa forma de governo que nasce das três reunidas [31]. Assim, os reis nos oferecem o amor paternal; os grandes, o sábio conselho; o povo, a liberdade[32]
Considerando que o poder sem a sabedoria que ensina a governar-se a si mesmo e a dirigir os demais, é uma vergonha [33], conclui, exortando: que pode haver de mais admirável do que uma República governada pela virtude, quando aquele que manda os outros não obedece a nenhuma paixão, quando não impõe aos seus concidadãos nenhum preceito que ele próprio não observe; quando não dita ao povo qualquer lei a que ele próprio se não obrigue, e a sua conduta inteira pode apresentar-se como exemplo para a sociedade que governa?[34].
A mesma procura do regime misto aparece em São Tomás de Aquino, quando defende uma politia bene commixta, misturando um só a presidir (unus praest), com os que estão na governação a mandar segundo a virtude (multi principantur secundum virtutem) e com o povo a eleger os detentores do principado (ex popularibus possunt eligi principes)[35].
 Já Bodin criticava Aristóteles por este não ter feito a adequada distinção entre a forma do Estado (a sede da soberania) e a forma do Governo (a maneira de exercer o poder) : Aristote a pris la forme de gouverner pour l'estat d'une République[36]..
Assim, veio distinguir aquilo que nós hoje designamos por Estado (e que ele chamou République) daquilo que actualmente qualificamos por regime (a que ele chamou l'estat).
Considera que se deve ter em conta a essência e não a qualidade dos regimes: a qualidade não altera a natureza das coisas... se se avaliasse o estado das repúblicas exactamente pelos seus vícios e virtudes, encontrar-se-ia um mundo imenso.
Montesquieu se mantém a classificação tripartida das trois espèces de gouvernement[37], atendendo à natureza do governo, perspectivada de acordo com o critério quantitativo do número dos detentores do poder, não deixa de fazer essa distinção com base na observação comparatista. Assim, salienta que, por natureza, pode haver a forma de República – conforme tinha acontecido em Atenas e Roma e se mantinha em Veneza e Génova –, a forma de Monarquia – como no seu tempo acontecia em França e Inglaterra , e a forma de Despotismo – que ele via como o regime dos países do Oriente, como a Pérsia, a Turquia, a China, o Japão e Moscóvia[38].
Vai, no entanto, utilizar uma distinção qualitativa nova quando fala no principio do Governo, entendendo por tal o propósito que anima o povo, o que o faz actuar. Assim, considera que a república fundamenta-se na virtude, no amor à pátria e à igualdade que faz a devoção dos cidadãos ao bem público; a monarquia, na honra, no amor dos privilégios e distinções; o despotismo no medo.
Desenvolvendo o conceito de virtude, considera que o mesmo consiste na probidade, na preferência contínua pelo interesse público sobre o interesse próprio, no amor pelas leis, pela pátria, pela igualdade e pela frugalidade. A este respeito, salienta que não é necessária muita probidade para que um governo monárquico ou um governo despótico se mantenham ou sustentem. Num, a força das leis, no outro, o braço sempre levantado do príncipe, regulam ou contêm tudo. Mas num Estado popular é necessário um grau mais elevado que é a virtude que é uma renúncia a si mesmo, que é sempre uma coisa muito dolorosa[39]
Refira-se, contudo, que Montesquieu considera que o governo republicano tanto pode ser democrático, quando o exerce o povo inteiro, como aristocrático, quando é apenas exercido por parte do povo.
Já o governo monárquico existe quando há um só que governa com leis fixas e estabelecidas[40], isto é, com leis fundamentais[41], mas também com poderes intermediários, subordinados e dependentes, entre os quais destaca o da nobreza.
Finalmente, o governo é despótico quando governa um só, mas sem lei e sem normas apenas segundo a sua vontade e o seu capricho. Um despotismo onde também é incluída a anarquia, considerada como o despotismo de todos[42].
Não deixa, no entanto, de considerar que tanto a democracia como a monarquia podem degenerar: as monarquias corrompem-se logo que, pouco a pouco, tiram as prerrogativas às ordens e os privilégios às cidades ... A monarquia perde-se logo que o príncipe, relacionando tudo a si próprio, chamando Estado à sua capital, chama capital à sua Corte e Corte à sua pessoa ... logo que retira aos grandes o respeito dos povos e os transforma em instrumentos do poder arbitrário.
Quanto à democracia, vai mais longe, e deixa o enigmático de considerar que a própria virtude, o princípio da democracia, tem necessidade de ser limitada[43]



[1]ARISTÓTELES, Política, VII, 4, 1326 b, p. 487 e VII, 5, 1327 a, p. 488
[2]Apud  PRESTON KING , O Estudo da Política  [1936], Brasília, 1980, Editora da Universidade de Brasília,  p.15
[3]ALAIN, Propos sur les Pouvoirs. Éléments d'Éthique Politique, Paris, Gallimard, 1985, texto de 1912, p. 162
[4]Texto de 1928, idem, p. 181
[5]Texto de 1913, idem, p. 195
[6]ROBERT DAHL, Dilemmas of Pluralist Democracy. Autonomy vs. Control, New Haven, Yale University Press, 1982
[7]LASKI, loc. cit., pp. 10‑11
[8]Ver bibliografia no nosso Sobre a Ciência Política, Lisboa, ISCSP, 1994
[9]Idem, VIII, 544e, p. 365
[10]p. 280
[11]Idem, IX, 571c, p. 411
[12]Idem, IX, 572b, p. 413
[13]Idem, IX, 576c, p. 420
[14]Idem, IX, 577a, p. 421
[15]Idem, IX, 581c, p. 429
[16]Idem, VIII,563d, p. 398
[17]Idem, VIII, 563e, p. 398
[18]Idem, VIII, 564a, p. 399
[19]Idem, VIII, 564a, p. 399
[20]Idem, VIII, 562e, p. 397
[21]Idem, VIII, 563b, p. 397
[22]Idem, VIII, 565d, p. 402
[23]Idem, VIII, 570c, p. 410
[24]Idem, III, 8, 1279b, p. 201
[25]Idem, III, 1,1275a)
[26]Idem, III, 1, 1275b, p. 170
[27]Idem, III, &, 1279a, p. 197
[28]Idem, III, 7, 1279a, p. 199
[29]POLÍBIO, Historia romana, 6, 11, & 1, apud GARCIA-GALLO, op. cit., p. 305
[30]Idem, 6, 11, &2
[31]CÍCERO, De Republica, trad. cast., México, Editorial Porrúa, 1973, p.24
[32]Idem,  p. 25
[33]Idem,  p. 24
[34]Idem, ibidem
[35]Ver o nosso Ensaio sobre o Problema do Estado, II, p. 257
[36]JEAN BODIN, Methodus ad facilem historiarum cognitionem, versão francesa, Paris, PUF, 1952, p. 338
[37] MONTESQUIEU, Lettres Persannes, CXXXI
[38]Sobre a matéria,  A. BARBOSA DE MELO, Democracia e Utopia. Reflexões, Porto, separata da revista Humanística e Teologia, 1980, p. 37
[39]MONTESQUIEU, De l'Esprit des Lois, III, 3; IV, 5; V, 3; III, 3; IV, 5.
[40]Idem,  II, 1
[41]Idem,  II, 4
[42]Sobre a matéria, o nosso Ensaio sobre o Problema do Estado, II, pp. 205-206
[43]MONTESQUIEU, De l'Esprit des Lois, XI, 4

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