A invenção do controlo do poder
Montesquieu, partindo dos princípios que todo o homem que tem poder sente inclinação para abusar dele, indo até
onde encontra limites (c'est une
expérience éternelle que toute himme qui a du pouvoir est porté à en abuser)
e que, para que não se possa abusar do
poder é necessário que, pela disposição das coisas, o poder trave o poder (le pouvoir arrête le pouvoir)[1],
Montesquieu considerou não bastar que o poder fosse controlado apenas pelas
leis, dado que estas sempre podem ser abolidas, como mostra a experiência dos
conflitos entre as leis e o poder, onde este tem sempre saído vitorioso.
Assim visionou um sistema de pesos e contrapesos, tratando de
limitar o poder no interior do próprio poder, onde para cada faculdade de
estatuir (estatuer), o direito de ordenar por si mesmo ou de
corrigir aquilo que foi ordenado por outro, se deveria opor uma faculdade
de vetar ou de impedir (empêcher), o direito de tornar nula uma resolução
tomada por qualquer outro[2].
Deste modo, considerava que, para formar um governo moderado, é preciso combinar os poderes (puissances), regulá-los, temperá-los [3]
Dentro da mesma preocupação, Bertrand de Jouvenel considera
que o instinto de crescimento é próprio
do Poder, pertencendo à respectiva substância. Tal processo actuaria pelo nivelamento, referindo um ácido estatal que decompõe as moléculas aristocráticas[4].
É que o poder, no seu
crescimento, tem como vítimas predestinadas e como opositores naturais
poderosos, os chefes de fila, aqueles que exercem uma autoridade e possuem um
poderio na sociedade.
A esse processo chama estatocracia,
referindo uma tradicional aliança entre
o centro e a plebe contra os corpos intermédios dotados de autoridade: o Estado encontra nos plebeus os servidores
que o reforçam, os plebeus encontram no Estado o senhor que os eleva[5].
Nesta linha também Moisei Ostrogorski dizia que a propriedade
natural de todo o poder consiste em concentrar-se[6].
O nosso Alexandre Herculano, por seu lado, falava no despotismo dos césares de multidões.
Tocqueville referia o
despotismo democrático e a tirania
colectiva, considerados como o governo
de um único que, à distância, tem sempre por efeito inevitável tornar os homens
semelhantes entre si e mutuamente indiferentes à sua sorte.
O mesmo Jouvenel, por seu lado, refere que os governos concedem benesses ao povo para,
com a sua ajuda, arrebatarem a influência aos agrupamentos sociais secundários,
escondendo a sede de mando sob a aparência de protecção que manifestam estar
dispostos a conceder[7].
Weber referia a
democracia de massa, o aparecimento
de um poder anónimo. Para ele a
organização burocrática chegou habitualmente ao poder na base do nivelamento
das diferenças económicas e sociais ... a burocracia acompanha inevitavelmente
a moderna democracia de massa, em contraste com o Governo autónomo e
democrático das pequenas unidades homogéneas[8].
Já para Gustave le Bon, as multidões são tão autoritárias como intolerantes.... sempre dispostas à revolta contra uma autoridade fraca, a multidão
curva-se com servilismo diante de uma autoridade forte ... não é a necessidade
de liberdade, mas a de servidão que domina sempre a alma das multidões. A sua
sede de obediência fá-las submeter-se instintivamente a quem se declara seu
senhor [9].
O concentracionarismo se tem como aliado o nivelamento
atomicizador, que propicia a unidimensionalização, já teme qualquer forma de
aristocracia, nomeadamente a do individualismo filosófico.
O individualismo, nomeadamente o dos intelectuais livres –
por oposição aos intelectuais orgânicos ou bem pensantes e à intelligentzia – é o individualismo
daqueles que têm coragem de estar em minoria
O concentracionarismo tende para a unidimensionalização
geométrica do objecto que comanda. Prefere os consumidores de uma abstracção;
prefere eleitores a cidadãos que professem o direito à diferença; prefere ter
como bem comum uma abstracção desde a
defesa da nação ao desenvolvimento
económico.
A política tem o seu princípio e os seus princípios na polis grega, essa forma de organização
dos homens, onde, no dizer de Fenélon, tudo dependia do povo, mas onde o povo
dependia da palavra. Foi aí que começou a praticar-se e a teorizar-se a
democracia, uma unidade de teoria e de acção que concebia a polis como um conjunto de cidadãos, de
homens livres e iguais, de homens dotados de isonomia, como o dever e o direito, de através da palavra,
participar nas decisões da comunidade, pela isegoria.
E talvez não haja política sem aquele sistema que, segundo as
actuais palavras de João Paulo II, assegura
a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a
possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os
substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno[10],
sem aquele sistema democrático, onde, se vale mais o experimentá-lo do que julgá-lo, não deixa de ser possível o julgue-o quem não puder experimentá-lo.
Fiéis ao discurso fundador de Péricles, também nos apetece
proclamar que não há política sem democracia, sem esse modo de organizar os
homens que, conforme o discurso fundador de Péricles, tem como fim a utilidade do maior número e não a de uma minoria. Aquele regime
onde as dignidades não são distribuídas
segundo a fortuna de cada um e onde as
funções nunca têm uma longa duração; todos os cidadãos são chamados a julgar
nos tribunais; a decisão de todas as coisas depende da assembleia geral dos
cidadãos[11].
Acontece apenas, como assinalava Rousseau, que a tomar o termo no rigor da acepção, nunca
existiu a verdadeira democracia, e nunca existirá. É contra a ordem natural que
o grande número governe e que o pequeno seja governado. Não se pode conceber
que o povo permaneça constantemente junto para se ocupar dos negócios públicos,
e vê-se facilmente que não poderia estabelecer comissões para isso sem mudar a
forma de administração[12].
A democracia, conforme salienta o mesmo Rousseau, é um governo tão perfeito que não convém aos
homens, pelo que se houvesse um povo
de deuses, governar-se-ia democraticamente[13].
Com efeito, não há nenhum defensor da democracia que não
concorde com a plurissecular crítica dos detractores da democracia,
reconhecendo que, na prática, a teoria é outra.
A democracia não passa de um padrão de um ideal que só
se pode concretizar-se quando os homens deixarem de ser humanos. Como me foi
dado ler num artigo de José Régio, publicado por ocasião da campanha eleitoral
de 1969, a democracia é tão incumprida quanto aqueles dois princípios sociais
do cristianismo que proclamam a necessidade do amar o teu próximo como a ti mesmo e do não faças ao outro o que não queres que te façam a ti. É que eles
não deixam de ser o bem, apesar de, há dois mil anos, não serem praticados,
mesmo entre os cristãos. A saúde não deixa de ser um bem, mesmo que só haja
doentes no mundo.
Conforme ensina Cabral de Moncada, a democracia tanto é uma ideia pura, situada a nível da
filosofia, como também se traduz nos valores
que a ideia pretende servir, situados a nível da cultura, níveis esses bem
diversos do acidental das realizações históricas da democracia[14].
Também António Sérgio distinguia o
sistema e ideias da democracia, considerado eterno porque deriva da estrutura da consciência humana, esse governo do povo pelo povo, uma vez que o
eduquem para se governar a si mesmo, dos órgãos da democracia, dado que estes estão para aquele como os
meios estão para os fins[15]
A prática correspondente ao ideal da democracia, a forma de
vida em comum de homens concretos, correspondente a essa concepção do mundo e
da vida, a democracia que é possível, que é susceptível de ser vivida na cidade
dos homens, não passa daquilo que Robert Dahl qualifica como poliarquia.
Uma ordem política que, segundo Dahl, exige sete condições:
cargos electivos para o controlo das decisões políticas (elected officials); eleições livres, periódicas e imparciais (free and fair elections); sufrágio
universal (inclusive suffrage);
direito a ocupar cargos públicos (right to
run for office); liberdade de expressão (freedom of expression); existência e protecção, dada por lei, da
variedade de fontes de informação (alternative
information); direito a constituir associações e organizações autónomas,
partidos e grupos de interesse (associational
autonomy)[16].
Por seu lado, Bernard Crick considera que só há política
quando se atinge um sistema político
estável marcado pelas seguintes características: uma sociedade que
reconheça ser complexa, composta de indivíduos e onde existam instituições
representativas; onde a elite governante não exclua a participação política de
outras grupos; onde exista uma classe média considerável; onde o governo exerça
uma actividade predominantemente secular; onde o conflito social seja admitido
como normal e institucionalizado; onde o crescimento económico não crie
extremos de riqueza; onde a sociedade possa defender-se de forma normal, pelos
meios diplomáticos e militares, mas onde também possa controlar os seus
militares; onde haja uma tradição de especulação política, levando a que a
elite governante tenha o desejo de actuar politicamente[17]
Uma poliarquia que
se aproxima bastante da clássica procura do regime
misto e do governo moderado,
exigindo, conforme Alain, um tipo de exercício do poder diferente da decisão de
um só ou do modelo oligárquico, um poder que
a Ciência Política não definiu e a que eu chamo o Controlador, que não é outra coisa senão o poder,
continuadamente efeicaz, de depor os Reis e os Especialistas de um momento para
o outro, se não conduzirem os negócios segundo o interesse do maior número... A
Democracia será, neste sentido, um esforço perpétuo dos governados contra os
abusos do poder. E como há, num indivíduo são, nutrição, eliminação,
reprodução, num justo equilíbrio, haverá assim numa sociedade sã: Monarquia,
Oligarquia, Democracia, num justo equilíbrio[18].
Por outras palavras, não há política sem cidadania, sem a
procura da participação na decisão, sem que tente eliminar-se a distância que
tende a separar o governante e o governado.
Não há política com escravos nem com súbditos, porque a polis não passa de um conjunto de
cidadãos, de mera forma dada a determinada matéria, a realidade substancial dos
indivíduos.
Daí a inevitável falta
de autenticidade de todas as democracias antigas e modernas, passadas
actuais, dada a tendência para a indiferença e para a ignorância de grande
parte dos formais cidadãos
Com efeito, se uma qualquer democracia impõe tanto uma
liderança governativa como a participação dos cidadãos nas decisões, eis que essas
duas exigências são sempre acompanhadas pelas degenerescências do elitismo, por
um lado, e pela indiferença ou apatia das massas, por outro.
A necessidade de governabilidade e de liderança tende para o
estabelecimento de uma elite no topo da pirâmide do poder, muitas vezes marcada
pelo facciosismo da partidocracia, pelo burocratismo e pelo fenómeno da compra
do poder ou da corrupção.
Por seu lado, a necessidade da participação pode levar a que
uma massa ignorante seja manipulada por demagogos ou se mantenha em regime de
indiferença face aos negócios públicos.
A polis grega está
de facto nas nossas origens. Ela está nos nossos começos e volta sempre a
aparecer nos nossos recomeços. Porque a política pode ser expropriada por
poderes não políticos, por muitos pretensos fins
da história do político, a partir dos quais temos de nascer de novo, procurando regenerar
o que degenerou.
Porque o homem vive sempre em eterna revolução, nesse giro de alguém sobre si mesmo, praticando o futuro
como o eterno retorno, na procura do que é melhor.
Porque o fim da
história que podemos viver é sempre um regresso
da história, essa consciência de que somos finitos e que sempre nos
estimula na procura do infinito.
Se sempre estivemos à beira de fundamentalismos, proclamando
pretensos fins da história, eis que,
como salienta o filósofo checo Jan Patocka, o segredo da nossa existência
europeia sempre foi a falta de uma qualquer certeza quanto ao sentido da
história[19].
Sempre reagimos, em nome da liberdade contra os que pensaram poder comandar o
sentido da história, por suporem deter o segredo do bem e do mal e que, com a
inquisições e juntas de providência literárias, trataram de organizar o index ou o compêndio histórico, esse exacto contrário da tolerância e do
relativismo.
É que o mal apenas reside no temperamento dogmático, e não nas
características especiais do dogma adoptado[20].
Por outras palavras, não há política fora de nós mesmos, não
há política que não se insira na luta do homem consigo mesmo. Porque o bem e o
mal não estão fora de nós, não radicam em sítios diferentes.
Foi de facto há vinte e cinco séculos, no período que vai de
499 a.C. a 322 a.C. que se deu a invenção da política.
[1]MONTESQUIEU,
De l'Esprit des Lois, XI, 4
[2]Idem, XI, 6
[3]Idem, V, 14
[4]BERTRAND
DE JOUVENEL, Du Pouvoir. Histoire
Générale de sa Croissance, Paris, Hachette, 1972, p. 255
[5]Idem,
p. 289
[6]MOISEI
OSTROGORSKI, La Démocratie et les Partis
Politiques, Paris, Seuil, 1979
[7]BERTRAND
DE JOUVENEL, Du Pouvoir, cit., p. 245
[8]MAX
WEBER, Ensaios de Sociologia,
organização e introdução de H. H. Gerth e C. Wright Mills, trad. port., Rio de
Janeiro, Zahar, 1971, p. 260
[10]
JOÃO PAULO II, Centesimus Annus, V,
46, trad. port., Lisboa, Secretariado Geral do Episcopado/ Rei dos Livros, 1991,
p. 100
[11]ADRIANO
MOREIRA, O Ideal Democrático. O Discurso
de Péricles, in Legado Político do
Ocidente, cit.
[15]ANTÓNIO
SÉRGIO, Democracia. Diálogos de Doutrina
Democrática. Alocução aos Socialistas. Cartas ao Terceiro Homem, Lisboa, Sá
da Costa, 1974, edição crítica, incluída nas Obras Completas, p. 7
[16]ROBERT DAHL, Democracy
and Its Critics, Yale University Press, 1989, p. 221. Sobre
a matéria, ver também SAMUEL P. HUNTINGTON, The
Third Wave. Democratization in the Late Twentieth Century, University of
Oklahoma Press, 1993, onde o começo da terceira onda da democracia, entre 1974
e 1990, é colocado em Portugal, tanto no 25 de Abril de 1974, como no 25 de
Novembro de 1975, onde Kerensky ganhou e
a democracia venceu, com Mário Soares a servir de anti-Kerensky e Ramalho
Eanes de anti-Lenine. Op. cit., p. 5.
[17] BERNARD CRICK, Em Defesa
da Política, trad. port., cit., pp. 123-124