sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Estado de direito

Estado de direito  


Deve à lei o que a faz obediência

O Estado considerado em si como poder de facto, transforma‑se, através do reconhecimento da personalidade dos súbditos, num poder juridicamente limitado

As questões políticas e administrativas adquiriram uma forma jurídica para conjurar o arbitrio, para submeter ao direito o poder público, nenhum meio mais eficaz, mais directo e seguro do que considerar o Estado como pessoa jurídica

Sem o direito natural não há Estado de direito. Pois a submissão do Estado à ordem jurídica, com a garantia dos direitos humanos, só é verdadeiramente eficaz reconhecendo-se um critério objetivo de justiça, que transcende o direito positivo e do-qual este depende. Ou a razão do direito e da justiça reside num princípio superior à votante dos legisladores e decorrente da própria natureza, ou a ordem jurídica é simplesmente expressão da força social dominante

Muitos ainda continuam a confundir o Estado de Direito com o mero Estado de Legalidade.

Houve, e há, Estados que nem eram democráticos nem de direito, mas que sempre se assumiram como Estados de Legalidade, acirrando o normativismo positivista na formação dos juristas e inscrevendo no portal dos tribunais o lema do  dura lex, sed lex (a nossa I República e o nosso velho Estado Novo). Houve, e há, Estados democráticos que começaram por não ser Estados de Direito (o nosso Estado abrilista, de 1976 a 1982). Há ainda Estados de Direito que ainda não assumiram a plenitude do Estado de Justiça (o nosso Estado pós-cavaquista e pós-soarista, aqui e agora).

Até há pouco tempo, o Estado de Direito era mero apanágio dos juristas, continuava enevoado pela penumbra protectora do campo jurídico, era objecto de um discurso apenas acessível aos iniciados (Jacques Chevalier). Agora, que começa a surgir na praça pública, talvez se torne num assunto demasiadamente sério para ser apenas deixado aos magistrados, aos advogados e aos restantes juristas. Tal como as questões da segurança não são apenas para os polícias e os serviços secretos. Tal como as questões políticas não são apenas para a classe política.

Porque, felizmente, não vivemos num regime de paz dos cemitérios, temos aprendido, com a experiência, que o Estado é cada vez mais o lugar onde a sociedade se mediatiza, se pensa, tornando-se na instância onde devem regular-se as crises e tensões da sociedade (Stéphane Rials).

Com efeito, o núcleo essencial dos Estados Absolutistas dos Anciens Régimes era marcado por três tópicos nucleares: primeiro, que L'État c'est moi, isto é, que o Estado é igual ao ponto de cúpula do sistema, ao soberano rei-sol que devia ser déspota porque se presumia esclarecido, só pela circunstância de alguns filósofos quererem que as respectivas luzes se potenciassem pelo chicote. Segundo, o quod princeps placuit legis habet vigorem, que aquilo que o príncipe pretende tem força de lei, que o soberano está ab-solutus, solto, livre de limites, nomeadamente do direito. Uma ideia bem expressa por Hobbes, para quem o soberano teria poder de fazer as leis e de as abrogar, pelo que também poderia, quando assim o desejasse, livrar-se dessas sujeições anulando as leis que o perturbam e proclamar novas leis. Terceiro que princeps a legibus solutus, que o príncipe, o soberano, não está sujeito à lei que ele próprio edita para os outros.

Foi contra este ambiente de despotismo ministerial que o Estado de Direito do demoliberalismo contemporâneo veio responder, proclamando que o Estado de Direito, em vez de um pacto de sujeição (pactum subjectionis), face a um soberano exterior, exige um radicado pacto de união (pactum unionis), que se traduz tanto num contrato social originário, dito pacto de constituição (pactum constitutionis) como em sucessivos pactos de adesão de uma soberania popular periodicamente manifestada através de eleições livres e pluralistas, pelas quais pode mudar-se, sem a violência naturalista, o conjunto dos poderes estabelecidos.

Não se pense, contudo, que foi fácil esse regresso à política, à cidadania e ao consenso do direito. Não se pense que continua a ser pacífica essa operação de constitucionalização do poder e de juridificação da política (Blandine Barret-Kriegel*). Essa perspectiva do Estado-aparelho de poder como simples manifestação do Estado-comunidade, o regresso à necessária concórdia entre o princeps e a res publica. Esse entendermos que o reino não é para o rei, mas o rei para o reino.

É bem complexa a missão da paz contra a guerra e do direito contra o poder. É ciclópica a tarefa de sairmos da razão de Estado e entrarmos no Estado-Razão. E muitos continuam a não compreender a necessidade de uma operacionalidade que garanta o rex eris si recte facias, do serás governante se fizeres o bem, podendo seres punido em nome do senão ... não.
É difícil polir e civilizar o despotismo, isto é, darmos polis e civitas àqueles que continuam a não distinguir o Estado da casa, a confundir o governo político e civil com o governo doméstico, para utilizarmos as palavras de Montesquieu.

O próprio nome Estado de Direito, proveniente da expressão anglo-saxónica rule of law onde rule não é império, nemlaw é lei, conforme as habituais traduções que são traições, tem demorado a entrar no discurso dos juristas e nem sequer aparecia na versão original da Constituição de 1976.

O tópico apenas começou a ser utilizado a partir de finais do século XIX, nomeadamente pelo impulso do professor de Oxford A. V. Dicey (1835-1922), na obra Introduction to the Study of the Law of the Constitution, de 1885, sendo por ele definido como absence of arbitrary power on the part of government.

Aí considera que the rule of law é o princípio fundamental da constituição britânica, distinguindo-o do conceito francês de legalidade, desenvolvido pelo direito administrativo, e do Rechtstaat alemão dos finais do século XIX.

Uma das primeiras consequências do princípio está na ausência doe poder arbitrário, ou discricionário, marcado pelo capricho, por parte do government. Com efeito, tal princípio impõe, por um lado a supremacia absoluta, ou a predominância, da lei regular, entendida como o oposto do poder arbitrário, e, por outro, a igualdade perante a lei, ou a sujeição de todas as classes à lei ordinária, sem privilégio para os próprios funcionários ou agentes do Estado.
Por último, a fórmula expressa o facto de, nos domínios da constituição britânica, the law of the constitution, não ser a fonte, mas antes a consequência dos direitos dos indivíduos, como a liberdade pessoal, a liberdade de discussão ou o direito de reunião em público.

O mesmo Dicey, observando o crescendo do legalismo e da codificação, principalmente nos domínios do direito penal, falava num decline of reverence for the rule of law, assinalando a profunda relação entre o direito e a moral social, osmores maiorum, no âmbite dos regimes democráticos.

O tal Estado de Direito nasceu como contra-imagem e contra-semelhança do Estado de Não Direito. Porque, como dizia o nosso jurista dos finais do século XVIII, António Ribeiro dos Santos, em um governo que não é despótico, a vontade do rei deve ser a vontade da lei. Tudo o mais é arbitrário; e do arbítrio nasce logo necessariamente o despotismo. Porque, como dizia, no século anterior outro jurista português, Manuel Rodrigues Leitão (1630- 1691),nem tudo o que se pode é lícito, quem faz tudo o que pode está muito perto de fazer o que não deve.

Isto é, o Estado de Direito mergulha bem fundo na história da liberdade. Em todos aqueles que sempre proclamaram que todo o poder é um poder-dever, um encargo ou um ofício. Onde o detentor do mesmo é apenas um servidor, um oficial, um servus ministerialis, um escravo do fim para que lhe foi conferido o mesmo poder, pelo que, quem abusa do poder, como quem abusa do direito, deixa de ter poder e deixa de ter direito

Porque o Estado de Direito visou reconciliar a política e o direito, onde, no dizer de mestre Cabral de Moncada, o direito tem de passar a servir uma política, mas onde, por outro lado, a política tem que ser limitada pelo direito. Porque o Estado de Direito é aquele onde o poder não só tem o seu fundamento no direito, como também está, externa e internamente, limitado pelo mesmo direito.

Desta forma, utilizando palavras de Alceu Amoroso Lima, visa-se que a política não negue o direito, evitando o espectro da tirania, e, por outro lado, que o direito não negue a política, impedindo que se levante o espectro da anarquia. Visa-se, em suma, o ideal democrático, esse regime que procura reunir a política e o direito no plano da ordem pública.
Toda esta digressão teórica visa apenas chamar a atenção para a circunstância de a democracia restaurada a partir das revoluções demoliberais ter cometido o pecado de acreditar na sacralidade de uma lei feita por deputados eleitos e na plenitude de códigos de leis, ditos sistemáticos, sintéticos e scientíficos, reduzindo o magistrado à mera boca que pronuncia as palavras da lei.

Numa primeira fase, quando não se admitiu a hipótese de uma lei injusta e quando se considerou a justiça como mera questão metafísica, apenas se admitiu o princípio da legalidade, ou de primauté de la loi, conforme as perspectivas reducionistas das escolas do positivismo exegétido e codificacionista.

Ficou sem perceber-se que a lei tanto podia resultar de uma vontade de todos, através dos seus representantes eleitos, como da própria decisão de um executivo. Continuou a proclamar-se que a obediência faz o imperante e a considerar-se o poder soberano como o circuito directo de comando entre um superior e um conjunto de inferiores colocados em estado de sujeição

Numa primeira fase, o tópico foi conceituado como simples Estado de Direito Formal, como o Estado onde haveria igualdade da lei ou igualdade de todos perante a lei. Numa segunda fase, passou a assumir-se de forma bem mais complexa, quando se redescobriu que o direito não podia ser reduzido à lei ou ao decreto do príncipe, mas antes a algo de mais transcendente, a Justiça.

É que, num Estado de Direito, como Estado de Justiça, já não bastaria a mera igualdade da lei, exigindo-se maior profundidade, a igualdade pela lei ou a igualdade através da lei, a tal igualdade global, identificada com a justiça, que, se impõe o tratamento igual daquele que é igual, também exige o tratamento desigual daquele que é desigual.
O que implica, não apenas a justiça comutativa, mas também a justiça distributiva e a justiça social, isto é, as categorias aristotélicas e tomistas, que, segundo Leibniz, seriam correspondentes aos antiquíssimos preceitos do direito romano (praecepta juris): o alterum non laedere ( o não prejudicar o outro), o suum cuique tribuere (o dar a cada um o seu, o dar a cada um conforme as suas necessidades) e o honeste vivere (o viver honestamente, o exigir de cada um conforme as suas possibilidades).

Isto é, o tópico Estado de Direito é bastante mais problemático que o simples primauté de la loi ou que o mero princípio da legalidade, conceitos com que a doutrina positivista o tentou aprisionar nas teias do mero juridicismo.
Desculpem continuar a insistir nestas doutrinarices, mas, voltando a glosar Fernando Pessoaeu só posso admitir queo Estado está acima do cidadão se, antes, considerar que o Homem está acima do Estado.


© José Adelino Maltez

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A invenção do controlo do poder

A invenção do controlo do poder
Montesquieu, partindo dos princípios que todo o homem que tem poder sente inclinação para abusar dele, indo até onde encontra limites (c'est une expérience éternelle que toute himme qui a du pouvoir est porté à en abuser) e que, para que não se possa abusar do poder é necessário que, pela disposição das coisas, o poder trave o poder (le pouvoir arrête le pouvoir)[1], Montesquieu considerou não bastar que o poder fosse controlado apenas pelas leis, dado que estas sempre podem ser abolidas, como mostra a experiência dos conflitos entre as leis e o poder, onde este tem sempre saído vitorioso.
Assim visionou um sistema de pesos e contrapesos, tratando de limitar o poder no interior do próprio poder, onde para cada faculdade de estatuir (estatuer), o direito de ordenar por si mesmo ou de corrigir aquilo que foi ordenado por outro, se deveria opor uma faculdade de vetar ou de impedir (empêcher), o direito de tornar nula uma resolução tomada por qualquer outro[2].
Deste modo, considerava que, para formar um governo moderado, é preciso combinar os poderes (puissances), regulá-los, temperá-los [3]

Dentro da mesma preocupação, Bertrand de Jouvenel considera que o instinto de crescimento é próprio do Poder, pertencendo à respectiva substância. Tal processo actuaria pelo nivelamento, referindo um ácido estatal que decompõe as moléculas aristocráticas[4].
É que o poder, no seu crescimento, tem como vítimas predestinadas e como opositores naturais poderosos, os chefes de fila, aqueles que exercem uma autoridade e possuem um poderio na sociedade.
A esse processo chama estatocracia, referindo uma tradicional aliança entre o centro e a plebe contra os corpos intermédios dotados de autoridade: o Estado encontra nos plebeus os servidores que o reforçam, os plebeus encontram no Estado o senhor que os eleva[5].
Nesta linha também Moisei Ostrogorski dizia que a propriedade natural de todo o poder consiste em concentrar-se[6].
O nosso Alexandre Herculano, por seu lado, falava no despotismo dos césares de multidões.
Tocqueville referia o despotismo democrático e a tirania colectiva, considerados como o governo de um único que, à distância, tem sempre por efeito inevitável tornar os homens semelhantes entre si e mutuamente indiferentes à sua sorte.
O mesmo Jouvenel, por seu lado, refere que os governos concedem benesses ao povo para, com a sua ajuda, arrebatarem a influência aos agrupamentos sociais secundários, escondendo a sede de mando sob a aparência de protecção que manifestam estar dispostos a conceder[7].
Weber referia a democracia de massa, o aparecimento de um poder anónimo. Para ele a organização burocrática chegou habitualmente ao poder na base do nivelamento das diferenças económicas e sociais ... a burocracia acompanha inevitavelmente a moderna democracia de massa, em contraste com o Governo autónomo e democrático das pequenas unidades homogéneas[8].
Já para Gustave le Bon, as multidões são tão autoritárias como intolerantes.... sempre dispostas à revolta contra uma autoridade fraca, a multidão curva-se com servilismo diante de uma autoridade forte ... não é a necessidade de liberdade, mas a de servidão que domina sempre a alma das multidões. A sua sede de obediência fá-las submeter-se instintivamente a quem se declara seu senhor [9].
O concentracionarismo se tem como aliado o nivelamento atomicizador, que propicia a unidimensionalização, já teme qualquer forma de aristocracia, nomeadamente a do individualismo filosófico.
O individualismo, nomeadamente o dos intelectuais livres – por oposição aos intelectuais orgânicos ou bem pensantes e à intelligentzia – é o individualismo daqueles que têm coragem de estar em minoria
O concentracionarismo tende para a unidimensionalização geométrica do objecto que comanda. Prefere os consumidores de uma abstracção; prefere eleitores a cidadãos que professem o direito à diferença; prefere ter como bem comum uma abstracção desde a defesa da nação ao desenvolvimento económico.

A política tem o seu princípio e os seus princípios na polis grega, essa forma de organização dos homens, onde, no dizer de Fenélon, tudo dependia do povo, mas onde o povo dependia da palavra. Foi aí que começou a praticar-se e a teorizar-se a democracia, uma unidade de teoria e de acção que concebia a polis como um conjunto de cidadãos, de homens livres e iguais, de homens dotados de isonomia, como o dever e o direito, de através da palavra, participar nas decisões da comunidade, pela isegoria.
E talvez não haja política sem aquele sistema que, segundo as actuais palavras de João Paulo II, assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno[10], sem aquele sistema democrático, onde, se vale mais o experimentá-lo do que julgá-lo, não deixa de ser possível o julgue-o quem não puder experimentá-lo.
Fiéis ao discurso fundador de Péricles, também nos apetece proclamar que não há política sem democracia, sem esse modo de organizar os homens que, conforme o discurso fundador de Péricles, tem como fim a utilidade do maior número e não a de uma minoria. Aquele regime onde as dignidades não são distribuídas segundo a fortuna de cada um e onde as funções nunca têm uma longa duração; todos os cidadãos são chamados a julgar nos tribunais; a decisão de todas as coisas depende da assembleia geral dos cidadãos[11].
Acontece apenas, como assinalava Rousseau, que a tomar o termo no rigor da acepção, nunca existiu a verdadeira democracia, e nunca existirá. É contra a ordem natural que o grande número governe e que o pequeno seja governado. Não se pode conceber que o povo permaneça constantemente junto para se ocupar dos negócios públicos, e vê-se facilmente que não poderia estabelecer comissões para isso sem mudar a forma de administração[12].
A democracia, conforme salienta o mesmo Rousseau, é um governo tão perfeito que não convém aos homens, pelo que se houvesse um povo de deuses, governar-se-ia democraticamente[13].
Com efeito, não há nenhum defensor da democracia que não concorde com a plurissecular crítica dos detractores da democracia, reconhecendo que, na prática, a teoria é outra.
A democracia não passa de um padrão de um ideal que só se pode concretizar-se quando os homens deixarem de ser humanos. Como me foi dado ler num artigo de José Régio, publicado por ocasião da campanha eleitoral de 1969, a democracia é tão incumprida quanto aqueles dois princípios sociais do cristianismo que proclamam a necessidade do amar o teu próximo como a ti mesmo e do não faças ao outro o que não queres que te façam a ti. É que eles não deixam de ser o bem, apesar de, há dois mil anos, não serem praticados, mesmo entre os cristãos. A saúde não deixa de ser um bem, mesmo que só haja doentes no mundo.
Conforme ensina Cabral de Moncada, a democracia tanto é uma ideia pura, situada a nível da filosofia, como também se traduz nos valores que a ideia pretende servir, situados a nível da cultura, níveis esses bem diversos do acidental das realizações históricas da democracia[14]. Também António Sérgio distinguia o sistema e ideias da democracia, considerado eterno porque deriva da estrutura da consciência humana, esse governo do povo pelo povo, uma vez que o eduquem para se governar a si mesmo, dos órgãos da democracia, dado que estes estão para aquele como os meios estão para os fins[15]
A prática correspondente ao ideal da democracia, a forma de vida em comum de homens concretos, correspondente a essa concepção do mundo e da vida, a democracia que é possível, que é susceptível de ser vivida na cidade dos homens, não passa daquilo que Robert Dahl qualifica como poliarquia.
Uma ordem política que, segundo Dahl, exige sete condições: cargos electivos para o controlo das decisões políticas (elected officials); eleições livres, periódicas e imparciais (free and fair elections); sufrágio universal (inclusive suffrage); direito a ocupar cargos públicos (right to run for office); liberdade de expressão (freedom of expression); existência e protecção, dada por lei, da variedade de fontes de informação (alternative information); direito a constituir associações e organizações autónomas, partidos e grupos de interesse (associational autonomy)[16].
Por seu lado, Bernard Crick considera que só há política quando se atinge um sistema político estável marcado pelas seguintes características: uma sociedade que reconheça ser complexa, composta de indivíduos e onde existam instituições representativas; onde a elite governante não exclua a participação política de outras grupos; onde exista uma classe média considerável; onde o governo exerça uma actividade predominantemente secular; onde o conflito social seja admitido como normal e institucionalizado; onde o crescimento económico não crie extremos de riqueza; onde a sociedade possa defender-se de forma normal, pelos meios diplomáticos e militares, mas onde também possa controlar os seus militares; onde haja uma tradição de especulação política, levando a que a elite governante tenha o desejo de actuar politicamente[17]
Uma poliarquia que se aproxima bastante da clássica procura do regime misto e do governo moderado, exigindo, conforme Alain, um tipo de exercício do poder diferente da decisão de um só ou do modelo oligárquico, um poder que a Ciência Política não definiu e a que eu chamo o Controlador, que não é outra coisa senão o poder, continuadamente efeicaz, de depor os Reis e os Especialistas de um momento para o outro, se não conduzirem os negócios segundo o interesse do maior número... A Democracia será, neste sentido, um esforço perpétuo dos governados contra os abusos do poder. E como há, num indivíduo são, nutrição, eliminação, reprodução, num justo equilíbrio, haverá assim numa sociedade sã: Monarquia, Oligarquia, Democracia, num justo equilíbrio[18].
Por outras palavras, não há política sem cidadania, sem a procura da participação na decisão, sem que tente eliminar-se a distância que tende a separar o governante e o governado.
Não há política com escravos nem com súbditos, porque a polis não passa de um conjunto de cidadãos, de mera forma dada a determinada matéria, a realidade substancial dos indivíduos.
Daí a inevitável falta de autenticidade de todas as democracias antigas e modernas, passadas actuais, dada a tendência para a indiferença e para a ignorância de grande parte dos formais cidadãos
Com efeito, se uma qualquer democracia impõe tanto uma liderança governativa como a participação dos cidadãos nas decisões, eis que essas duas exigências são sempre acompanhadas pelas degenerescências do elitismo, por um lado, e pela indiferença ou apatia das massas, por outro.
A necessidade de governabilidade e de liderança tende para o estabelecimento de uma elite no topo da pirâmide do poder, muitas vezes marcada pelo facciosismo da partidocracia, pelo burocratismo e pelo fenómeno da compra do poder ou da corrupção.
Por seu lado, a necessidade da participação pode levar a que uma massa ignorante seja manipulada por demagogos ou se mantenha em regime de indiferença face aos negócios públicos.
A polis grega está de facto nas nossas origens. Ela está nos nossos começos e volta sempre a aparecer nos nossos recomeços. Porque a política pode ser expropriada por poderes não políticos, por muitos pretensos fins da história do político, a partir dos quais temos de nascer de novo, procurando regenerar o que degenerou.
Porque o homem vive sempre em eterna revolução, nesse giro de alguém sobre si mesmo, praticando o futuro como o eterno retorno, na procura do que é melhor.
Porque o fim da história que podemos viver é sempre um regresso da história, essa consciência de que somos finitos e que sempre nos estimula na procura do infinito.
Se sempre estivemos à beira de fundamentalismos, proclamando pretensos fins da história, eis que, como salienta o filósofo checo Jan Patocka, o segredo da nossa existência europeia sempre foi a falta de uma qualquer certeza quanto ao sentido da história[19]. Sempre reagimos, em nome da liberdade contra os que pensaram poder comandar o sentido da história, por suporem deter o segredo do bem e do mal e que, com a inquisições e juntas de providência literárias, trataram de organizar o index ou o compêndio histórico, esse exacto contrário da tolerância e do relativismo.
É que o mal apenas reside no temperamento dogmático, e não nas características especiais do dogma adoptado[20].
Por outras palavras, não há política fora de nós mesmos, não há política que não se insira na luta do homem consigo mesmo. Porque o bem e o mal não estão fora de nós, não radicam em sítios diferentes.
Foi de facto há vinte e cinco séculos, no período que vai de 499 a.C. a 322 a.C. que se deu a invenção da política.




[1]MONTESQUIEU, De l'Esprit des Lois, XI, 4
[2]Idem,  XI, 6
[3]Idem,  V, 14
[4]BERTRAND DE JOUVENEL, Du Pouvoir. Histoire Générale de sa Croissance, Paris, Hachette, 1972, p. 255
[5]Idem, p. 289
[6]MOISEI OSTROGORSKI, La Démocratie et les Partis Politiques, Paris,  Seuil, 1979
[7]BERTRAND DE JOUVENEL, Du Pouvoir, cit., p. 245
[8]MAX WEBER, Ensaios de Sociologia, organização e introdução de H. H. Gerth e C. Wright Mills, trad. port., Rio de Janeiro, Zahar, 1971, p. 260
[9]GUSTAVE LE BON, La Psychologie des Foules, 1910
[10] JOÃO PAULO II, Centesimus Annus, V, 46, trad. port., Lisboa, Secretariado Geral do Episcopado/ Rei dos Livros, 1991, p. 100
[11]ADRIANO MOREIRA, O Ideal Democrático. O Discurso de Péricles, in Legado Político do Ocidente, cit.
[12]JEAN-JACQUES ROUSSEAU, Du Contrat Social, Livro III, Cap. IV, p. 69
[13]Idem, Livro III, Cap. IV, p. 70
[14]LUÍS CABRAL DE MONCADA, Problemas de Filosofia Política, cit., p. 53
[15]ANTÓNIO SÉRGIO, Democracia. Diálogos de Doutrina Democrática. Alocução aos Socialistas. Cartas ao Terceiro Homem, Lisboa, Sá da Costa, 1974, edição crítica, incluída nas Obras Completas, p. 7
[16]ROBERT DAHL, Democracy and Its Critics, Yale University Press, 1989, p. 221. Sobre a matéria, ver também SAMUEL P. HUNTINGTON, The Third Wave. Democratization in the Late Twentieth Century, University of Oklahoma Press, 1993, onde o começo da terceira onda da democracia, entre 1974 e 1990, é colocado em Portugal, tanto no 25 de Abril de 1974, como no 25 de Novembro de 1975, onde Kerensky ganhou e a democracia venceu, com Mário Soares a servir de anti-Kerensky e Ramalho Eanes de anti-Lenine. Op. cit., p. 5.
[17] BERNARD CRICK, Em Defesa da Política, trad. port., cit., pp. 123-124
[18]ALAIN, Propos sur les Pouvoirs, artigo de 1910, Paris, Gallimard, 1985, p. 214
[19]JAN PATOCKA, Essais Hérétiques sur la Philosophie de l'Histoire, Paris, Verdier, 1981
[20]BERTRAND RUSSELL, Realidade e Ficção, p. 322

As degenerescências demoliberais

As degenerescências demoliberais
Vejamos agora algumas dessas formas de degenerescência do poder, focando essencialmente os desviacionismos da legitimidade demoliberal marcada pelo conceito de Estado de Direito Democrático.
Começaremos pelas grandes classificações bipolares que, num pólo, colocam o Estado de Direito e, no outro, o Estado de não-Direito.
Georges Burdeau, por exemplo, opunha a divisão de poderes à monocracia, incluindo nesta os governos que só têm poder em si próprios e tendem a confundir o poder com a propriedade, considerando o poder mais como uma coisa do que uma relação. Segundo Burdeau, na monocracia haveria um centro único de força política, fosse qual fosse o processo de designação ou de recrutamento da autoridade governamental, situação que formas pré-estaduais, onde existe confusão entre a Propriedade e o exercício do Poder e que se distinguiria da autocracia, o regime em que os governos só têm o poder de si próprios. Já na divisão de poderes, eis que em lugar de confundir com uma vontade única, o Poder do Estado só se imporá por efeito de um acordo entre as vontades de vários órgãos, de tal maneira que a eficácia de cada uma delas se subordinará ao consentimento de todas as outras[1].
Eric Weil utilizava a oposição governo autocrático e governo constitucional, entre aquele modelo onde o governo é o único a deliberar, a decidir e a agir, sem qualquer intervenção obrigatória de outras instâncias e estoutro onde o governo se considera, e é considerado pelos cidadãos, como tendo de observar certas regras legais que limitam a sua liberdade de acção, pela intervenção obrigatória de outras instituições e definem assim as condições da validade dos actos governamentais[2].
Se no governo autocrático os cidadãos não dispõem de qualquer recurso legal contra os actos da administração, já no governo constitucional há independência dos tribunais e o cidadão pode invocar o direito diante de autoridades independentes do governo e da administração e obter deles tanto a declaração de invalidade de uma medida legal como também a reparação de uma violação. Além disso, eis que no governo constitucional, a lei exige a participação dos cidadãos na feitura da legislação e na tomada de decisões políticas, pelo que a instituição que principalmente caracteriza o Estado constitucional é o parlamento que, exprimindo os desejos e a moral viva da sociedade-comunidade particular, permite e controla a acção racional e razoável do governo e dá-lhe a possibilidade de educar o povo[3].
Raymond Aron, por seu lado, fazia uma distinção entre o Estado Total, onde haveria uma confusão entre o Estado e a Sociedade, e o Estado Limitado, onde a sociedade seria distinta do Estado, distinguindo os regimes de partido monopolístico dos regimes constitucionais-pluralistas[4].
Entre as degenerescências, temos em primeiro lugar, a usurpação, onde, para utilizarmos as categorias de Benjamin Constant, se mantêm as anteriores formas de liberdade, mas para as profanar, gerando-se uma contrafacção da liberdade[5].
Foi o caso do principado em Roma e do bonapartismo. Com efeito, o princeps, o principal dos cidadãos, nasceu com Octávio que, acumulando sucessivas magistraturas republicanas, começou por assumir-se como o salvador das instituições republicanas, para libertar a república das facções que a oprimiam.
É assim que se assumem todos os fenómenos de personalização do poder, onde há sempre um Octávio a transformar-se em césar, logo reclamando o qualificativo de augusto, para, depois, se volver em imperator, onde o princeps já reclama as categorias de dominus e deus.

O principado romano que durou de 27 a.C. ao ano de 284 surgiu quando os vários órgãos da República Romana instituíram Octávio como princeps civitatis, como o principal dos cidadãos. Ele que já era cônsul, recebeu, depois, a tribunicia potestas a título vitalício – com os poderes correspondentes ao tribuno da plebe, nomeadamente o direito de veto sobre as deliberações dos outros magistrados - e o imperium - o poder de comandar o exército e de fiscalizar pessoalmente a administração de todas as províncias. Não tarda que vá acrescentando uma série de outros títulos, como o de augustus, de pater patriae e até de imperator.
A partir de então, o princeps constitui um novo tipo de magistratura que já não se enquadra na categoria das magistraturas republicanas, marcadas pela temporalidade, pluralidade e colegialidade. Pouco a pouco, vão-se concentrando nele o imperium dos magistrados republicanos, a auctoritas do Senado e a maiestas do populus. Aliás, as próprias decisões do Senado, os senatus consulta, apesar de formalmente continuarem, transformam-se na repetição dos discursos do príncipe (orationes principis). Da mesma forma, os comitia do povo, se não foram abolidos, vão morrendo por inactividade. Ao mesmo tempo, cria-se um corpo burocrático, directamente dependente do Príncipe, constituído pelos legati, pelos praefecti e pelos procuratores, bem como novos instrumentos orgânicos, como o Concilium Principis, depois transformado em Consistorium Principis, enquanto aquilo que era o tesouro da cidade (o aerarium), vai cedendo perante o fiscus (a fortuna pessoal do príncipe).
Quando Diocleciano, em 284, o principado cede o lugar ao dominado, dado que o imperator passa a intitular-se dominus e deus, exigindo adoratio e considerando que o seu poder não derivava da velha lex curiata de imperio, mas antes de uma investidura divina.
Os posteriores fenómenos de personalização do poder têm algumas analogias com o modelo de Octávio.
Maquiavel vem referir os principados novos, aqueles onde um homem particular passa a príncipe pela sua virtù, pelo seu talento e não pela sorte, criando-se um Estado Novo. Seria o caso de Moisés, Ciro, Rómulo e Teseu que não tiveram outra sorte, além da ocasião, porque sem a ocasião, os seus talentos e o seu espírito ter-se-iam perdido; sem os seus talentos, a ocasião teria surgido em vão[6]. Teria sido a excelência da sua virtù que lhes permitiu identificar a oportunidade[7], embora tivessem que estar bem armados porque a natureza dos povos é mutável e, se é fácil persuadi-los de uma coisa, torna-se difícil mantê-los nessa persuasão[8]. Assim, haveria que proceder de tal maneira que, quando deixarem de acreditar, se possa obrigá-los a crer pela força, como teria sido o caso dos profetas não armados, como Jerónimo Savonarola, cuja ruína surgiu, na nova ordem por ele estabelecida, tão-logo a multidão começou a descrer e viu que ele não possuía os meios necessários para manter em respeito aqueleas que nele tinham acreditado, nem para convocar os que não acreditavam nele[9].
Um caso exemplar de personalização do poder, à maneira do principado romano, sucedeu com a ascensão de António Oliveira Salazar ao poder que, depois de adquirir prestígio como Ministro das Finanças, mantendo as magistraturas republicanas, nomeadamente a de Óscar Carmona, o presidente da República eleito por sufrágio universal, transformou o consulado da Ditadura Nacional, num Estado Novo, onde, de acordo com a Constituição de 1933, se manteve como Presidente do Conselho de Ministros, por vezes, acumulando pastas.

Já no despotismo dá-se o banimento de todas as formas de liberdade, surgindo um estado de astenia do político, anemia do jurídico, ausência de deliberação, onde o poder é tudo e a política não é nada, onde o comando é absoluto e a lei desvanece-se, onde o público é rebatido pelo privado e o político prostra-se no doméstico. Assim, os litígios públicos e os debates colectivos são substituídos pelas intrigas palacianas e pelas querelas familiares, conforme Blandine Barret-Kriegel[10].
A teorização contemporânea do despotismo deve-se sobretudo a Montesquieu, no seu De l'Esprit des Lois de 1748, onde o despotismo, constitui uma forma de regime político diversa da monarquia e da república, onde um só, sem lei e sem regra, tudo entraîne pela sua vontade e pelos seus caprichos (un seul sans loi e sans règle, entraîne tout par sa volonté et ses caprices)[11]. Aqui, o princípio do regime, diferentemente da honra para a monarquia e da virtude, para a república, constitui o medo.
Outra degenerescência dá-se na escravidão voluntária, onde o tirano apenas tem o poder que se lhe dá, um poder que vem da volonté de servir das multidões que ficam fascinadas e seduzidas por um só[12].
É que os escravos são tão culpados quanto os tiranos. É difícil de dizer se a liberdade poderá reprovar mais justamente aqueles que a atacam do que aqueles que a não defendem, conforme as palavras de Beaumarchais.
Próxima desta escravidão temos aquela forma de cedência da liberdade à segurança de que já falava Alexis de Tocqueville, quando assinalava a eventual emergência de um poder absoluto, pormenorizado, ordenado, previdente e doce[13] provocado pela circunstância de sermos permanentemente solicitados por duas tendências opostas: sentirmos a necessidade de sermos dirigidos e o desejo de continuarmos livres[14].
O despotismo surge assim através de novos aspectos, nomeadamente quando o soberano estende os braços para abarcar a sociedade inteira, e cobre-a de uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, através da qual mesmo os espíritos mais originais e as almas mais fortes não conseguirão romper para se distinguirem da multidão[15]. Surge assim uma servidão, ordenada, calma e doce[16], uma espécie de compromisso entre o despotismo e a soberania do povo[17].
Vários autores na senda de La Psychologie des Foules (1895) de Gustave Le Bon vieram alertar para a emergência de uma sociedade de massa. O que levou, conforme as palavras de Fernando Pessoa, que a sociedade se tenha tornado mais numa reunião de instintos do que num concurso de inteligências, porque, segundo as palavras de Vilfredo Pareto (1848-1923), para agir sobre os homens, os raciocínios têm necessidade de transformar-se em sentimentos[18].
Sigmund Freud (1856-1939) teorizou a psicologia das massas, salientando que o condutor das multidões é sempre uma incarnação do pai primitivo, onde a multidão quer ser sempre dominada por um poder ilimitado, estando ávida de autoridade e com sede de submissão[19].
Ortega y Gasset (1883-1955), em A Rebelião das Massas, de 1930, vem dizer que o homem-massa como entidade anónima, alia-se ao intervencionismo do Estado, também entendido como poder anónimo. Julius Evola refere a existência de um Estado Multidão, semelhante à antiga tirania popular, com um realismo plebeu e uma existência inferior, dessacralizada[20].
 Nesta senda, os aplicadores das teses de Freud à política, vêm teorizar uma degenerescência do poder equivalente à cupidez de reinar, de que falava Maquiavel, a libido dominandi.
Uma outra forma de degenerescência é a da multidão solitária, de acordo com as teses de David Riesman, The Lonely Crowd, de 1950. Para ele, as relações do indivíduo com o mundo exterior e com ele mesmo passam cada vez mais pelo intermediário das comunicações de massa. Deste modo, as pessoas heterodeterminadas (other-determined) fazem a experiência dos acontecimentos políticos através de um écran de palavras... Todos os heterodeterminados (o contrário dos intra-determinados) têm em comum a circunstância da atitude do indivíduo ser orientada pelos seus contemporâneos[21].
A estrutura do poder em vez de se assumir como uma hierarquia única, coroada por uma classe dominante, foi substituída por uma pluralidade de grupos de pressão e de interesse (veto groups) que, hoje, partilham o poder[22]. Os heterodeterminados passam assim a ser meros consumidores de produtos oferecidos por uma série de grupos, pelo que em vez de uma pirâmide, o poder aparece como um labirinto, fruto tanto das evoluções económicas como do próprio processo cultural, dado que se formam e forjam sujeitos cada vez mais fracos e mais influenciáveis, totalmente dependentes das comunicações.
Os grupos de pressão deram origem a uma estrutura de poder singularmente amorfa, onde é difícil estabelecer a distinção entre o chefe e as tropas, entre aqueles que é preciso ajudar e aqueles que é preciso combater, entre amigos e adversários[23]
Benjamin Constant chamava a atenção para a circunstância do centralismo democrático destruir a variedade local em nome da construção do Estado, quando os revolucionários para construir o edifício começaram por pulverizar os materiais que deviam utilizar[24], esquecendo que a variedade é a organização; a uniformidade é o mecanismo. A variedade é a vida; a uniformidade é a morte[25].Assim, em todos os Estados onde se destruiu a variedade local, eis que um pequeno Estado forma-se no centro; na capital aglomeram-se todos os interesses, vão agitar-se todas as ambições[26].
Na sequência desta atracção pelo centro, surge a tendência para a uniformidade: é pena que não se deitem abaixo todas as cidades para reconstrui-las segundo o mesmo plano, nivelar as montanhas para que o terreno seja igual em todo o lado; é estranho que não tenham ordenado a todos os habitantes para usar o mesmo fato, a fim de que o senhor não reencontre mais a miscelânea irregular e de chocante variedade[27].
No caso da tirania temos aquela forma de governo que não procura o consentimento nem a persuasão, mas a opressão e a violência, como já dizia Platão. Trata-se daquele modelo que segue as ideias de Xenofonte, o admirador de Esparta, que concebia, para Atenas, um governo militar[28].
Foi a partir deste conceito que a escolástica medieval distinguiu entre o tirano que não tem título e o tirano que o passa a ser pelo modo como exerce o poder.
Com o absolutismo, atinge-se a forma do despotismo iluminado, o despotisme éclairé dos enciclopedistas, todo ele cheio de boas intenções, desde a proposta de Francis Bacon para a instauração de um governo da ciência, à perspectiva fisiocrática de um despotisme légale, que seria diferente do mero despotisme arbitraire.
Qualitativamente diferente da tirania é a experiência contemporânea do totalitarismo, como se manifestou no estalinismo, no nazismo e no maoísmo, apesar de alguns antecedentes históricos, como a ditadura teocrática de Calvino, o modelo inquisitorial da Contra-Reforma, a república dos santos de Cromwell ou o terrorismo jacobino.
Segundo Carl J. Friedrich e Zbigniew Brzezinski, o totalitarismo teria seis grandes características:
-uma ideologia oficial entendida como corpo de doutrina que abrange todos os aspectos vitais da existência humana, À qual todos os que vivem nessa sociedade deve aderir, pelo menos, passivamente
-um único partido de massas dirigido tipicamente por um homem e que é organizado hierarquicamente e de forma oligárquica, acima ou totalmente ligado à organização burocrática do governo
- a existência de um sistema de controlo policial terrorista que é dirigido não só contra inimigos declarados, mas também arbitrariamente para certas classes da população, com uma polícia secreta que utiliza a psicologia científica;
-os meios de comunicação de massa estão sob monopólio quase completo
- a existência de situação idêntica no que diz respeito aos meios armados
- controlo e direcção central de toda a economia[29]
Mais recentemente Giovanni Sartori, veio utilizar outro modelo para a conceitualização do totalitarismo, fazendo nele imbricar as degenerescências do autoritarismo e da ditadura[30]. Utilizando cada uma das três categorias como modelos abstractos, marcados por determinadas características, vem considerar que na realidade, os diversos regimes degenerados vão pontuando, segundo vários critérios, numa dessas três tipologias, conforme o quadro seguinte:


Critério

Totalitarismo
Autoritarismo
Ditadura Simples
Ideologia


Forte e totalística
Não totalística
Irrelevante ou fraca
Penetração do Estado na sociedade civil

Extensiva
Modesta
Nenhuma
Coerção

Alta
Média
Média baixa
Independência do subgrupo

Nenhuma
Limitada a grupos políticos
Permitida com excepções
Políticas face a outros grupos

Destrutiva
Exclusivista
Absorção
Arbitrariedade


Ilimitada
Dentro de limites prévios
Errática
Centralismo do partido


Essencial
Útil
Mínima ou nenhuma

Segundo o critério da ideologia, entendida como um sistema de crenças idêntico ao de uma religião, uma interpretação substantiva do mundo ou uma simples forma mentis, a gradação passaria por um crescendo.
Quanto à penetração do Estado (aparelho de poder) na sociedade civil, o totalitarismo seria aquele regime que destrói a separação entre o público e o privado. Já não estaríamos perante o L'État c'est moi, do despotismo esclarecido, mas antes naquilo que Trotski disse de Estaline: La Societé c'est moi.
Mussolini, por exemplo, apesar de ter proclamado o tudo no Estado, nada fora do Estado, não passou da retórica, dado que na Itália fascista continuaram a florescer vários nichos de autonomia da sociedade civil..
O totalitarismo assumir-se-ia sempre como uma negação de uma concepção pluralista da sociedade. Seria, pelo menos, a destruição da crença no valor do pluralismo.
Já quanto ao critério da coerção ou mobilização, Sartori refere que a capacidade de mobilização tanto pode resultar da densidade organizacional como do fervor ideológico, sublinhando que a concentração do poder (isto é, a não separação dos poderes) não pode ser confundida com a respectiva centralização, da mesma forma como um sistema monista não tem que ser monolítico.
A este respeito, se C. J. Friedrich colocava como um dos elemento definidores do totalitarismo, um sistema policial terrorista (terrorist police system), já Sartori considera que o terror é contingente num sistema totalitário, não sendo uma característica necessária, porque quando o controlo totalitário entrou na rotina, o terror tornou-se supérfluo.
Quanto ao critério da arbitrariedade, Sartori define-o como o exacto contrário da rule of law, do Estado de Direito.
Aceitando o essencial desta perspectiva, acrescentaremos que são possíveis três concepções de totalidade política e, consequentemente três modelos de totalitarismo.
No Estado fascista e, em certo sentido, no absolutismo, é o Estado, qua tale, que domina e forma a sociedade, suprimindo a liberdade desta;
No Estado soviético, surge o Estado-Partido, primeiro, com Lenine, onde temos um partido totalitário visando a reconstrução total da sociedade, depois, com Estaline, com um Estado totalitário que subordinou totalmente a sociedade, e, finalmente, com Brejnev, onde surge um Estado totalmente estagnado, dominado por um partido totalitário corrupto[31]l.
Num terceiro modelo, como foi praticado pelo nazismo, o Estado e a Sociedade já se reúnem numa unidade nova, através de uma espécie de terceira força: o povo político formando um todo, através de um movimento que transforma o Estado num simples aparelho administrativo.

Na linha de Georges Bernanos, para quem o Estado Totalitário é menos uma causa do que um sintoma. Não é ele que destrói a liberdade, pois organiza-se sobre as suas ruínas, eis que Vaclav Havel vem tentar determinar as causas do totalitarismo, elencando as seguintes: a concepção dominante da ciência moderna, o racionalismo, cientismo, a revolução industrial e a revolução em geral enquanto fanatismo da abstracção, o culto do consumo. Tudo, aliás, remontaria a Maquiavel o primeiro a formular a teoria da política como uma tecnologia racional do poder[32].
Assim, se considera que os totalitarismos do Leste teriam sido mera expansão retroactiva dos frutos da própria expansão do pensamento europeu ocidental[33]. Já no tocante aos efeitos do totalitarismo, já salienta que, depois do estalinismo, ter-se-ia atingido um estádio de pós-totalitarismo que divergiria profundamente das ditaduras clássicas. Se estas tinham sido localmente restritas, já os modelos pós-totalitários a estariam dependentes de um bloco liderado por uma superpotência. Se as ditaduras clássicas teriam constituído meros acidentes sem raízes históricas, onde dominava o acaso, o arbitrário e a improvisação, já o modelo pós-totalitário constituiria um mecanismo perfeito e refinado de manipulação da sociedade. Enquanto, nas ditaduras clássicas haveria o entusiasmo revolucionário dos heróis, eis que nos modelos pós-totalitários seria marcante o cinzentismo de uma sociedade industrial de consumo, esquecendo-se que se baseiam na autenticidade dos movimentos operários e socialistas do século XIX e onde o poder político passou a deter o monopólio dos meios de produção[34].
Na mesma linha do pós-totalitarismo do regimes do leste europeu, importa salientar os regimes autoritários anticomunistas que assumiram o modelo do Estado de Segurança Nacional no tempo da guerra fria, onde podem incluir-se alguns regimes sul-americanos das décadas de sessenta e setenta, bem como a fase crepuscular do regime português da Constituição de 1933, onde a chamada política se transformou numa espécie de continuação da guerra civil por outros meios, instaurando-se um subsistema de medo, comandado por um serviço de informações paramilitar que levou a política interna a ser dominada pela política externa[35].



[1]GEORGES BURDEAU, Traité de Science Politique, cit., IV, pp. 294-295
[2]ERIC WEIL, Philosophie Politique, cit., p. 15
[3]Idem, pp. 161 e 167
[4]RAYMOND ARON, Démocratie et Totalitarisme, pp. 103-104
[5]BENJAMIN CONSTANT, De la Liberté chez les Modernes, Paris, Hachette, 1984, edição organizada por Marcel Gauchet, p. 172
[6]MAQUIAVEL, Il Principe, cap. VI, trad. port. de Fernanda Pinto Rodrigues, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1972, p. 34
[7]Idem, p. 35
[8]Idem, p. 36
[9]Idem, ibidem
[10]BLANDINE BARRET-KRIEGEL, L'État et les Esclaves, Paris, Payot, 1989, pp. 42-43
[11]MONTESQUIEU, De l'Esprit des Lois, II, 1
[12]Veja-se o clássico ETIENNE DE LA BOÉTIE (1530- 1563), Discours de la Servitude Volontaire[1548], Paris, Payot, 1976, com posfácios de Pierre Clastres, Liberté, Malencontre, Innommable, pp. 229-246 e Claude Lefort, Le Nom d'Un, pp. 247-307
[13]ALEXIS DE TOCQUEVILLE, A Democracia na América, trad. port, Lisboa, Estúdios Cor, 1972, p.432
[14]Idem, p. 433
[15]Idem, p. 433
[16]Idem, p. 433
[17]Idem, p.434
[18]Apud o nosso  Ensaio sobre o Problema do Estado, II, pp. 111-112
[19]Ver JACQUELINE RUSS, Les Théories du Pouvoir, Paris, Librairie Générale Française, 1992, p. 279
[20]JULIUS EVOLA, Revolta Contra o Mundo Moderno, trad. port., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, p. 418
[21]DAVID RIESMAN, La Foule Solitaire, Paris, Arthaud, 1964, pp. 44-45
[22]Idem, p.279
[23]Idem, p. 288
[24]Idem, p. 147
[25]Idem, p.151
[26]Idem, p. 150
[27]Idem, p.142
[28]Ver LEO STRAUSS, On Tyranny. Including Strauss-Kojève Correspondence, edição de Victor Gourevitch e Michael S. Rooth, Nova Iorque, The Free Press, 1991, onde Strauss, analisando a hipótese de Salazaar ser um bom tirano, qualifica o regime português de então como pós-constitucional, p. 188
[29]CARL J. FRIEDRICH e ZBIGNIEW BRZEZINSKI, Totalitarian Dictatorship and Autocracy, Cambridge Mass., Harvard University Press, 1956, apud PAUL T. MASON, O Totalitarismo, trad. port., Lisboa, 1958
[30]GIOVANNI SARTORI, Totalitarianism, Model mania and Learning from Error in Journal of Theoretical Politics, 5 (1): 5-22, 1993, pp. 5-22
[31] ZBIGNIEW BRZEZINSKI, The Great Failure. The Birth and Death of Communism in the Twentieth Century [1989], Londres, Macdonald & Co., 1990, p. 41
[32]VACLAV HAVEL; Essais Politiques, Paris, Calmann-Lévy, 1989, p. 238
[33]Idem, p. 234
[34]Idem, pp. 68-72
[35]Para maiores desenvolvimentos, ver o nosso Ensaio sobre o Problema do Estado, II, pp. 180 ss., bem como JOSEPH COMBLIN, Le Pouvoir Militaire en Amérique Latine. L'Idéologie de la Securité National, Paris, Ed. Jean-Pierre Delarge, 1977