sexta-feira, 31 de outubro de 2014

As degenerescências demoliberais

As degenerescências demoliberais
Vejamos agora algumas dessas formas de degenerescência do poder, focando essencialmente os desviacionismos da legitimidade demoliberal marcada pelo conceito de Estado de Direito Democrático.
Começaremos pelas grandes classificações bipolares que, num pólo, colocam o Estado de Direito e, no outro, o Estado de não-Direito.
Georges Burdeau, por exemplo, opunha a divisão de poderes à monocracia, incluindo nesta os governos que só têm poder em si próprios e tendem a confundir o poder com a propriedade, considerando o poder mais como uma coisa do que uma relação. Segundo Burdeau, na monocracia haveria um centro único de força política, fosse qual fosse o processo de designação ou de recrutamento da autoridade governamental, situação que formas pré-estaduais, onde existe confusão entre a Propriedade e o exercício do Poder e que se distinguiria da autocracia, o regime em que os governos só têm o poder de si próprios. Já na divisão de poderes, eis que em lugar de confundir com uma vontade única, o Poder do Estado só se imporá por efeito de um acordo entre as vontades de vários órgãos, de tal maneira que a eficácia de cada uma delas se subordinará ao consentimento de todas as outras[1].
Eric Weil utilizava a oposição governo autocrático e governo constitucional, entre aquele modelo onde o governo é o único a deliberar, a decidir e a agir, sem qualquer intervenção obrigatória de outras instâncias e estoutro onde o governo se considera, e é considerado pelos cidadãos, como tendo de observar certas regras legais que limitam a sua liberdade de acção, pela intervenção obrigatória de outras instituições e definem assim as condições da validade dos actos governamentais[2].
Se no governo autocrático os cidadãos não dispõem de qualquer recurso legal contra os actos da administração, já no governo constitucional há independência dos tribunais e o cidadão pode invocar o direito diante de autoridades independentes do governo e da administração e obter deles tanto a declaração de invalidade de uma medida legal como também a reparação de uma violação. Além disso, eis que no governo constitucional, a lei exige a participação dos cidadãos na feitura da legislação e na tomada de decisões políticas, pelo que a instituição que principalmente caracteriza o Estado constitucional é o parlamento que, exprimindo os desejos e a moral viva da sociedade-comunidade particular, permite e controla a acção racional e razoável do governo e dá-lhe a possibilidade de educar o povo[3].
Raymond Aron, por seu lado, fazia uma distinção entre o Estado Total, onde haveria uma confusão entre o Estado e a Sociedade, e o Estado Limitado, onde a sociedade seria distinta do Estado, distinguindo os regimes de partido monopolístico dos regimes constitucionais-pluralistas[4].
Entre as degenerescências, temos em primeiro lugar, a usurpação, onde, para utilizarmos as categorias de Benjamin Constant, se mantêm as anteriores formas de liberdade, mas para as profanar, gerando-se uma contrafacção da liberdade[5].
Foi o caso do principado em Roma e do bonapartismo. Com efeito, o princeps, o principal dos cidadãos, nasceu com Octávio que, acumulando sucessivas magistraturas republicanas, começou por assumir-se como o salvador das instituições republicanas, para libertar a república das facções que a oprimiam.
É assim que se assumem todos os fenómenos de personalização do poder, onde há sempre um Octávio a transformar-se em césar, logo reclamando o qualificativo de augusto, para, depois, se volver em imperator, onde o princeps já reclama as categorias de dominus e deus.

O principado romano que durou de 27 a.C. ao ano de 284 surgiu quando os vários órgãos da República Romana instituíram Octávio como princeps civitatis, como o principal dos cidadãos. Ele que já era cônsul, recebeu, depois, a tribunicia potestas a título vitalício – com os poderes correspondentes ao tribuno da plebe, nomeadamente o direito de veto sobre as deliberações dos outros magistrados - e o imperium - o poder de comandar o exército e de fiscalizar pessoalmente a administração de todas as províncias. Não tarda que vá acrescentando uma série de outros títulos, como o de augustus, de pater patriae e até de imperator.
A partir de então, o princeps constitui um novo tipo de magistratura que já não se enquadra na categoria das magistraturas republicanas, marcadas pela temporalidade, pluralidade e colegialidade. Pouco a pouco, vão-se concentrando nele o imperium dos magistrados republicanos, a auctoritas do Senado e a maiestas do populus. Aliás, as próprias decisões do Senado, os senatus consulta, apesar de formalmente continuarem, transformam-se na repetição dos discursos do príncipe (orationes principis). Da mesma forma, os comitia do povo, se não foram abolidos, vão morrendo por inactividade. Ao mesmo tempo, cria-se um corpo burocrático, directamente dependente do Príncipe, constituído pelos legati, pelos praefecti e pelos procuratores, bem como novos instrumentos orgânicos, como o Concilium Principis, depois transformado em Consistorium Principis, enquanto aquilo que era o tesouro da cidade (o aerarium), vai cedendo perante o fiscus (a fortuna pessoal do príncipe).
Quando Diocleciano, em 284, o principado cede o lugar ao dominado, dado que o imperator passa a intitular-se dominus e deus, exigindo adoratio e considerando que o seu poder não derivava da velha lex curiata de imperio, mas antes de uma investidura divina.
Os posteriores fenómenos de personalização do poder têm algumas analogias com o modelo de Octávio.
Maquiavel vem referir os principados novos, aqueles onde um homem particular passa a príncipe pela sua virtù, pelo seu talento e não pela sorte, criando-se um Estado Novo. Seria o caso de Moisés, Ciro, Rómulo e Teseu que não tiveram outra sorte, além da ocasião, porque sem a ocasião, os seus talentos e o seu espírito ter-se-iam perdido; sem os seus talentos, a ocasião teria surgido em vão[6]. Teria sido a excelência da sua virtù que lhes permitiu identificar a oportunidade[7], embora tivessem que estar bem armados porque a natureza dos povos é mutável e, se é fácil persuadi-los de uma coisa, torna-se difícil mantê-los nessa persuasão[8]. Assim, haveria que proceder de tal maneira que, quando deixarem de acreditar, se possa obrigá-los a crer pela força, como teria sido o caso dos profetas não armados, como Jerónimo Savonarola, cuja ruína surgiu, na nova ordem por ele estabelecida, tão-logo a multidão começou a descrer e viu que ele não possuía os meios necessários para manter em respeito aqueleas que nele tinham acreditado, nem para convocar os que não acreditavam nele[9].
Um caso exemplar de personalização do poder, à maneira do principado romano, sucedeu com a ascensão de António Oliveira Salazar ao poder que, depois de adquirir prestígio como Ministro das Finanças, mantendo as magistraturas republicanas, nomeadamente a de Óscar Carmona, o presidente da República eleito por sufrágio universal, transformou o consulado da Ditadura Nacional, num Estado Novo, onde, de acordo com a Constituição de 1933, se manteve como Presidente do Conselho de Ministros, por vezes, acumulando pastas.

Já no despotismo dá-se o banimento de todas as formas de liberdade, surgindo um estado de astenia do político, anemia do jurídico, ausência de deliberação, onde o poder é tudo e a política não é nada, onde o comando é absoluto e a lei desvanece-se, onde o público é rebatido pelo privado e o político prostra-se no doméstico. Assim, os litígios públicos e os debates colectivos são substituídos pelas intrigas palacianas e pelas querelas familiares, conforme Blandine Barret-Kriegel[10].
A teorização contemporânea do despotismo deve-se sobretudo a Montesquieu, no seu De l'Esprit des Lois de 1748, onde o despotismo, constitui uma forma de regime político diversa da monarquia e da república, onde um só, sem lei e sem regra, tudo entraîne pela sua vontade e pelos seus caprichos (un seul sans loi e sans règle, entraîne tout par sa volonté et ses caprices)[11]. Aqui, o princípio do regime, diferentemente da honra para a monarquia e da virtude, para a república, constitui o medo.
Outra degenerescência dá-se na escravidão voluntária, onde o tirano apenas tem o poder que se lhe dá, um poder que vem da volonté de servir das multidões que ficam fascinadas e seduzidas por um só[12].
É que os escravos são tão culpados quanto os tiranos. É difícil de dizer se a liberdade poderá reprovar mais justamente aqueles que a atacam do que aqueles que a não defendem, conforme as palavras de Beaumarchais.
Próxima desta escravidão temos aquela forma de cedência da liberdade à segurança de que já falava Alexis de Tocqueville, quando assinalava a eventual emergência de um poder absoluto, pormenorizado, ordenado, previdente e doce[13] provocado pela circunstância de sermos permanentemente solicitados por duas tendências opostas: sentirmos a necessidade de sermos dirigidos e o desejo de continuarmos livres[14].
O despotismo surge assim através de novos aspectos, nomeadamente quando o soberano estende os braços para abarcar a sociedade inteira, e cobre-a de uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, através da qual mesmo os espíritos mais originais e as almas mais fortes não conseguirão romper para se distinguirem da multidão[15]. Surge assim uma servidão, ordenada, calma e doce[16], uma espécie de compromisso entre o despotismo e a soberania do povo[17].
Vários autores na senda de La Psychologie des Foules (1895) de Gustave Le Bon vieram alertar para a emergência de uma sociedade de massa. O que levou, conforme as palavras de Fernando Pessoa, que a sociedade se tenha tornado mais numa reunião de instintos do que num concurso de inteligências, porque, segundo as palavras de Vilfredo Pareto (1848-1923), para agir sobre os homens, os raciocínios têm necessidade de transformar-se em sentimentos[18].
Sigmund Freud (1856-1939) teorizou a psicologia das massas, salientando que o condutor das multidões é sempre uma incarnação do pai primitivo, onde a multidão quer ser sempre dominada por um poder ilimitado, estando ávida de autoridade e com sede de submissão[19].
Ortega y Gasset (1883-1955), em A Rebelião das Massas, de 1930, vem dizer que o homem-massa como entidade anónima, alia-se ao intervencionismo do Estado, também entendido como poder anónimo. Julius Evola refere a existência de um Estado Multidão, semelhante à antiga tirania popular, com um realismo plebeu e uma existência inferior, dessacralizada[20].
 Nesta senda, os aplicadores das teses de Freud à política, vêm teorizar uma degenerescência do poder equivalente à cupidez de reinar, de que falava Maquiavel, a libido dominandi.
Uma outra forma de degenerescência é a da multidão solitária, de acordo com as teses de David Riesman, The Lonely Crowd, de 1950. Para ele, as relações do indivíduo com o mundo exterior e com ele mesmo passam cada vez mais pelo intermediário das comunicações de massa. Deste modo, as pessoas heterodeterminadas (other-determined) fazem a experiência dos acontecimentos políticos através de um écran de palavras... Todos os heterodeterminados (o contrário dos intra-determinados) têm em comum a circunstância da atitude do indivíduo ser orientada pelos seus contemporâneos[21].
A estrutura do poder em vez de se assumir como uma hierarquia única, coroada por uma classe dominante, foi substituída por uma pluralidade de grupos de pressão e de interesse (veto groups) que, hoje, partilham o poder[22]. Os heterodeterminados passam assim a ser meros consumidores de produtos oferecidos por uma série de grupos, pelo que em vez de uma pirâmide, o poder aparece como um labirinto, fruto tanto das evoluções económicas como do próprio processo cultural, dado que se formam e forjam sujeitos cada vez mais fracos e mais influenciáveis, totalmente dependentes das comunicações.
Os grupos de pressão deram origem a uma estrutura de poder singularmente amorfa, onde é difícil estabelecer a distinção entre o chefe e as tropas, entre aqueles que é preciso ajudar e aqueles que é preciso combater, entre amigos e adversários[23]
Benjamin Constant chamava a atenção para a circunstância do centralismo democrático destruir a variedade local em nome da construção do Estado, quando os revolucionários para construir o edifício começaram por pulverizar os materiais que deviam utilizar[24], esquecendo que a variedade é a organização; a uniformidade é o mecanismo. A variedade é a vida; a uniformidade é a morte[25].Assim, em todos os Estados onde se destruiu a variedade local, eis que um pequeno Estado forma-se no centro; na capital aglomeram-se todos os interesses, vão agitar-se todas as ambições[26].
Na sequência desta atracção pelo centro, surge a tendência para a uniformidade: é pena que não se deitem abaixo todas as cidades para reconstrui-las segundo o mesmo plano, nivelar as montanhas para que o terreno seja igual em todo o lado; é estranho que não tenham ordenado a todos os habitantes para usar o mesmo fato, a fim de que o senhor não reencontre mais a miscelânea irregular e de chocante variedade[27].
No caso da tirania temos aquela forma de governo que não procura o consentimento nem a persuasão, mas a opressão e a violência, como já dizia Platão. Trata-se daquele modelo que segue as ideias de Xenofonte, o admirador de Esparta, que concebia, para Atenas, um governo militar[28].
Foi a partir deste conceito que a escolástica medieval distinguiu entre o tirano que não tem título e o tirano que o passa a ser pelo modo como exerce o poder.
Com o absolutismo, atinge-se a forma do despotismo iluminado, o despotisme éclairé dos enciclopedistas, todo ele cheio de boas intenções, desde a proposta de Francis Bacon para a instauração de um governo da ciência, à perspectiva fisiocrática de um despotisme légale, que seria diferente do mero despotisme arbitraire.
Qualitativamente diferente da tirania é a experiência contemporânea do totalitarismo, como se manifestou no estalinismo, no nazismo e no maoísmo, apesar de alguns antecedentes históricos, como a ditadura teocrática de Calvino, o modelo inquisitorial da Contra-Reforma, a república dos santos de Cromwell ou o terrorismo jacobino.
Segundo Carl J. Friedrich e Zbigniew Brzezinski, o totalitarismo teria seis grandes características:
-uma ideologia oficial entendida como corpo de doutrina que abrange todos os aspectos vitais da existência humana, À qual todos os que vivem nessa sociedade deve aderir, pelo menos, passivamente
-um único partido de massas dirigido tipicamente por um homem e que é organizado hierarquicamente e de forma oligárquica, acima ou totalmente ligado à organização burocrática do governo
- a existência de um sistema de controlo policial terrorista que é dirigido não só contra inimigos declarados, mas também arbitrariamente para certas classes da população, com uma polícia secreta que utiliza a psicologia científica;
-os meios de comunicação de massa estão sob monopólio quase completo
- a existência de situação idêntica no que diz respeito aos meios armados
- controlo e direcção central de toda a economia[29]
Mais recentemente Giovanni Sartori, veio utilizar outro modelo para a conceitualização do totalitarismo, fazendo nele imbricar as degenerescências do autoritarismo e da ditadura[30]. Utilizando cada uma das três categorias como modelos abstractos, marcados por determinadas características, vem considerar que na realidade, os diversos regimes degenerados vão pontuando, segundo vários critérios, numa dessas três tipologias, conforme o quadro seguinte:


Critério

Totalitarismo
Autoritarismo
Ditadura Simples
Ideologia


Forte e totalística
Não totalística
Irrelevante ou fraca
Penetração do Estado na sociedade civil

Extensiva
Modesta
Nenhuma
Coerção

Alta
Média
Média baixa
Independência do subgrupo

Nenhuma
Limitada a grupos políticos
Permitida com excepções
Políticas face a outros grupos

Destrutiva
Exclusivista
Absorção
Arbitrariedade


Ilimitada
Dentro de limites prévios
Errática
Centralismo do partido


Essencial
Útil
Mínima ou nenhuma

Segundo o critério da ideologia, entendida como um sistema de crenças idêntico ao de uma religião, uma interpretação substantiva do mundo ou uma simples forma mentis, a gradação passaria por um crescendo.
Quanto à penetração do Estado (aparelho de poder) na sociedade civil, o totalitarismo seria aquele regime que destrói a separação entre o público e o privado. Já não estaríamos perante o L'État c'est moi, do despotismo esclarecido, mas antes naquilo que Trotski disse de Estaline: La Societé c'est moi.
Mussolini, por exemplo, apesar de ter proclamado o tudo no Estado, nada fora do Estado, não passou da retórica, dado que na Itália fascista continuaram a florescer vários nichos de autonomia da sociedade civil..
O totalitarismo assumir-se-ia sempre como uma negação de uma concepção pluralista da sociedade. Seria, pelo menos, a destruição da crença no valor do pluralismo.
Já quanto ao critério da coerção ou mobilização, Sartori refere que a capacidade de mobilização tanto pode resultar da densidade organizacional como do fervor ideológico, sublinhando que a concentração do poder (isto é, a não separação dos poderes) não pode ser confundida com a respectiva centralização, da mesma forma como um sistema monista não tem que ser monolítico.
A este respeito, se C. J. Friedrich colocava como um dos elemento definidores do totalitarismo, um sistema policial terrorista (terrorist police system), já Sartori considera que o terror é contingente num sistema totalitário, não sendo uma característica necessária, porque quando o controlo totalitário entrou na rotina, o terror tornou-se supérfluo.
Quanto ao critério da arbitrariedade, Sartori define-o como o exacto contrário da rule of law, do Estado de Direito.
Aceitando o essencial desta perspectiva, acrescentaremos que são possíveis três concepções de totalidade política e, consequentemente três modelos de totalitarismo.
No Estado fascista e, em certo sentido, no absolutismo, é o Estado, qua tale, que domina e forma a sociedade, suprimindo a liberdade desta;
No Estado soviético, surge o Estado-Partido, primeiro, com Lenine, onde temos um partido totalitário visando a reconstrução total da sociedade, depois, com Estaline, com um Estado totalitário que subordinou totalmente a sociedade, e, finalmente, com Brejnev, onde surge um Estado totalmente estagnado, dominado por um partido totalitário corrupto[31]l.
Num terceiro modelo, como foi praticado pelo nazismo, o Estado e a Sociedade já se reúnem numa unidade nova, através de uma espécie de terceira força: o povo político formando um todo, através de um movimento que transforma o Estado num simples aparelho administrativo.

Na linha de Georges Bernanos, para quem o Estado Totalitário é menos uma causa do que um sintoma. Não é ele que destrói a liberdade, pois organiza-se sobre as suas ruínas, eis que Vaclav Havel vem tentar determinar as causas do totalitarismo, elencando as seguintes: a concepção dominante da ciência moderna, o racionalismo, cientismo, a revolução industrial e a revolução em geral enquanto fanatismo da abstracção, o culto do consumo. Tudo, aliás, remontaria a Maquiavel o primeiro a formular a teoria da política como uma tecnologia racional do poder[32].
Assim, se considera que os totalitarismos do Leste teriam sido mera expansão retroactiva dos frutos da própria expansão do pensamento europeu ocidental[33]. Já no tocante aos efeitos do totalitarismo, já salienta que, depois do estalinismo, ter-se-ia atingido um estádio de pós-totalitarismo que divergiria profundamente das ditaduras clássicas. Se estas tinham sido localmente restritas, já os modelos pós-totalitários a estariam dependentes de um bloco liderado por uma superpotência. Se as ditaduras clássicas teriam constituído meros acidentes sem raízes históricas, onde dominava o acaso, o arbitrário e a improvisação, já o modelo pós-totalitário constituiria um mecanismo perfeito e refinado de manipulação da sociedade. Enquanto, nas ditaduras clássicas haveria o entusiasmo revolucionário dos heróis, eis que nos modelos pós-totalitários seria marcante o cinzentismo de uma sociedade industrial de consumo, esquecendo-se que se baseiam na autenticidade dos movimentos operários e socialistas do século XIX e onde o poder político passou a deter o monopólio dos meios de produção[34].
Na mesma linha do pós-totalitarismo do regimes do leste europeu, importa salientar os regimes autoritários anticomunistas que assumiram o modelo do Estado de Segurança Nacional no tempo da guerra fria, onde podem incluir-se alguns regimes sul-americanos das décadas de sessenta e setenta, bem como a fase crepuscular do regime português da Constituição de 1933, onde a chamada política se transformou numa espécie de continuação da guerra civil por outros meios, instaurando-se um subsistema de medo, comandado por um serviço de informações paramilitar que levou a política interna a ser dominada pela política externa[35].



[1]GEORGES BURDEAU, Traité de Science Politique, cit., IV, pp. 294-295
[2]ERIC WEIL, Philosophie Politique, cit., p. 15
[3]Idem, pp. 161 e 167
[4]RAYMOND ARON, Démocratie et Totalitarisme, pp. 103-104
[5]BENJAMIN CONSTANT, De la Liberté chez les Modernes, Paris, Hachette, 1984, edição organizada por Marcel Gauchet, p. 172
[6]MAQUIAVEL, Il Principe, cap. VI, trad. port. de Fernanda Pinto Rodrigues, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1972, p. 34
[7]Idem, p. 35
[8]Idem, p. 36
[9]Idem, ibidem
[10]BLANDINE BARRET-KRIEGEL, L'État et les Esclaves, Paris, Payot, 1989, pp. 42-43
[11]MONTESQUIEU, De l'Esprit des Lois, II, 1
[12]Veja-se o clássico ETIENNE DE LA BOÉTIE (1530- 1563), Discours de la Servitude Volontaire[1548], Paris, Payot, 1976, com posfácios de Pierre Clastres, Liberté, Malencontre, Innommable, pp. 229-246 e Claude Lefort, Le Nom d'Un, pp. 247-307
[13]ALEXIS DE TOCQUEVILLE, A Democracia na América, trad. port, Lisboa, Estúdios Cor, 1972, p.432
[14]Idem, p. 433
[15]Idem, p. 433
[16]Idem, p. 433
[17]Idem, p.434
[18]Apud o nosso  Ensaio sobre o Problema do Estado, II, pp. 111-112
[19]Ver JACQUELINE RUSS, Les Théories du Pouvoir, Paris, Librairie Générale Française, 1992, p. 279
[20]JULIUS EVOLA, Revolta Contra o Mundo Moderno, trad. port., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, p. 418
[21]DAVID RIESMAN, La Foule Solitaire, Paris, Arthaud, 1964, pp. 44-45
[22]Idem, p.279
[23]Idem, p. 288
[24]Idem, p. 147
[25]Idem, p.151
[26]Idem, p. 150
[27]Idem, p.142
[28]Ver LEO STRAUSS, On Tyranny. Including Strauss-Kojève Correspondence, edição de Victor Gourevitch e Michael S. Rooth, Nova Iorque, The Free Press, 1991, onde Strauss, analisando a hipótese de Salazaar ser um bom tirano, qualifica o regime português de então como pós-constitucional, p. 188
[29]CARL J. FRIEDRICH e ZBIGNIEW BRZEZINSKI, Totalitarian Dictatorship and Autocracy, Cambridge Mass., Harvard University Press, 1956, apud PAUL T. MASON, O Totalitarismo, trad. port., Lisboa, 1958
[30]GIOVANNI SARTORI, Totalitarianism, Model mania and Learning from Error in Journal of Theoretical Politics, 5 (1): 5-22, 1993, pp. 5-22
[31] ZBIGNIEW BRZEZINSKI, The Great Failure. The Birth and Death of Communism in the Twentieth Century [1989], Londres, Macdonald & Co., 1990, p. 41
[32]VACLAV HAVEL; Essais Politiques, Paris, Calmann-Lévy, 1989, p. 238
[33]Idem, p. 234
[34]Idem, pp. 68-72
[35]Para maiores desenvolvimentos, ver o nosso Ensaio sobre o Problema do Estado, II, pp. 180 ss., bem como JOSEPH COMBLIN, Le Pouvoir Militaire en Amérique Latine. L'Idéologie de la Securité National, Paris, Ed. Jean-Pierre Delarge, 1977

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