As degenerescências demoliberais
Vejamos agora algumas dessas formas de degenerescência do
poder, focando essencialmente os desviacionismos da legitimidade demoliberal
marcada pelo conceito de Estado de
Direito Democrático.
Começaremos pelas grandes classificações bipolares que, num
pólo, colocam o Estado de Direito e, no outro, o Estado de não-Direito.
Georges Burdeau, por exemplo, opunha a divisão de poderes à monocracia,
incluindo nesta os governos que só têm poder em si próprios e tendem a
confundir o poder com a propriedade, considerando o poder mais como uma coisa
do que uma relação. Segundo Burdeau, na monocracia haveria um centro único de força política, fosse qual fosse o processo de
designação ou de recrutamento da autoridade governamental, situação que
formas pré-estaduais, onde existe confusão
entre a Propriedade e o exercício do Poder e que se distinguiria da autocracia, o regime em que os governos só têm o poder de si próprios. Já na divisão de poderes, eis que em lugar de confundir com uma vontade única,
o Poder do Estado só se imporá por efeito de um acordo entre as vontades de
vários órgãos, de tal maneira que a eficácia de cada uma delas se subordinará
ao consentimento de todas as outras[1].
Eric Weil utilizava a oposição governo autocrático e governo
constitucional, entre aquele modelo onde o governo é o único a deliberar, a decidir e a agir, sem qualquer intervenção
obrigatória de outras instâncias e estoutro onde o governo se considera, e é considerado pelos cidadãos, como tendo
de observar certas regras legais que limitam a sua liberdade de acção, pela
intervenção obrigatória de outras instituições e definem assim as condições da
validade dos actos governamentais[2].
Se no governo autocrático os cidadãos não dispõem de qualquer
recurso legal contra os actos da administração, já no governo constitucional há
independência dos tribunais e o cidadão
pode invocar o direito diante de autoridades independentes do governo e da
administração e obter deles tanto a declaração de invalidade de uma medida
legal como também a reparação de uma violação. Além disso, eis que no governo
constitucional, a lei exige a participação dos cidadãos na feitura da
legislação e na tomada de decisões políticas, pelo que a instituição que principalmente caracteriza o Estado constitucional é
o parlamento que, exprimindo os desejos e a moral viva da sociedade-comunidade
particular, permite e controla a acção racional e razoável do governo e dá-lhe
a possibilidade de educar o povo[3].
Raymond Aron, por seu lado, fazia uma distinção entre o Estado Total, onde haveria uma confusão
entre o Estado e a Sociedade, e o Estado
Limitado, onde a sociedade seria distinta do Estado, distinguindo os
regimes de partido monopolístico dos regimes constitucionais-pluralistas[4].
Entre as degenerescências, temos em primeiro lugar, a usurpação, onde, para utilizarmos as
categorias de Benjamin Constant, se mantêm as anteriores formas de liberdade,
mas para as profanar, gerando-se uma contrafacção da liberdade[5].
Foi o caso do principado
em Roma e do bonapartismo. Com efeito, o princeps,
o principal dos cidadãos, nasceu com Octávio que, acumulando sucessivas
magistraturas republicanas, começou por assumir-se como o salvador das
instituições republicanas, para libertar
a república das facções que a oprimiam.
É assim que se assumem todos os fenómenos de personalização do poder, onde há sempre
um Octávio a transformar-se em césar,
logo reclamando o qualificativo de augusto,
para, depois, se volver em imperator,
onde o princeps já reclama as
categorias de dominus e deus.
O principado romano que durou de 27 a.C. ao ano de 284 surgiu
quando os vários órgãos da República Romana instituíram Octávio como princeps civitatis, como o principal dos
cidadãos. Ele que já era cônsul, recebeu, depois, a tribunicia potestas a título vitalício –
com os poderes correspondentes ao tribuno
da plebe, nomeadamente o direito de veto sobre as deliberações dos outros
magistrados - e o imperium - o poder
de comandar o exército e de fiscalizar pessoalmente a administração de todas as
províncias. Não tarda que vá acrescentando uma série de outros títulos, como o
de augustus, de pater patriae e até de imperator.
A partir de então, o princeps
constitui um novo tipo de magistratura que já não se enquadra na categoria das
magistraturas republicanas, marcadas pela temporalidade, pluralidade e
colegialidade. Pouco a pouco, vão-se concentrando nele o imperium dos magistrados republicanos, a auctoritas do Senado e a maiestas
do populus. Aliás, as próprias
decisões do Senado, os senatus consulta,
apesar de formalmente continuarem, transformam-se na repetição dos discursos do
príncipe (orationes principis). Da
mesma forma, os comitia do povo, se
não foram abolidos, vão morrendo por inactividade. Ao mesmo tempo, cria-se um
corpo burocrático, directamente dependente do Príncipe, constituído pelos legati, pelos praefecti e pelos procuratores,
bem como novos instrumentos orgânicos, como o Concilium Principis, depois transformado em Consistorium Principis, enquanto aquilo que era o tesouro da cidade
(o aerarium), vai cedendo perante o fiscus (a fortuna pessoal do príncipe).
Quando Diocleciano, em 284, o principado cede o lugar ao dominado, dado que o imperator passa a intitular-se dominus e deus, exigindo adoratio e
considerando que o seu poder não derivava da velha lex curiata de imperio, mas antes de uma investidura divina.
Os posteriores fenómenos de personalização do poder têm
algumas analogias com o modelo de Octávio.
Maquiavel vem referir os principados novos, aqueles onde um
homem particular passa a príncipe pela sua virtù,
pelo seu talento e não pela sorte,
criando-se um Estado Novo. Seria o caso de Moisés, Ciro, Rómulo e Teseu que não tiveram outra sorte, além da ocasião,
porque sem a ocasião, os seus talentos e
o seu espírito ter-se-iam perdido; sem os seus talentos, a ocasião teria
surgido em vão[6].
Teria sido a excelência da sua virtù
que lhes permitiu identificar a
oportunidade[7],
embora tivessem que estar bem armados porque
a natureza dos povos é mutável e, se é
fácil persuadi-los de uma coisa, torna-se difícil mantê-los nessa persuasão[8].
Assim, haveria que proceder de tal
maneira que, quando deixarem de acreditar, se possa obrigá-los a crer pela
força, como teria sido o caso dos profetas não armados, como Jerónimo
Savonarola, cuja ruína surgiu, na nova ordem
por ele estabelecida, tão-logo a multidão começou a descrer e viu que ele não
possuía os meios necessários para manter em respeito aqueleas que nele tinham
acreditado, nem para convocar os que não acreditavam nele[9].
Um caso exemplar de personalização do poder, à maneira do
principado romano, sucedeu com a ascensão de António Oliveira Salazar ao poder
que, depois de adquirir prestígio como Ministro das Finanças, mantendo as
magistraturas republicanas, nomeadamente a de Óscar Carmona, o presidente da República
eleito por sufrágio universal, transformou o consulado da Ditadura Nacional,
num Estado Novo, onde, de acordo com a Constituição de 1933, se manteve como
Presidente do Conselho de Ministros, por vezes, acumulando pastas.
Já no despotismo
dá-se o banimento de todas as formas de liberdade, surgindo um estado de astenia do político, anemia do jurídico,
ausência de deliberação, onde o poder
é tudo e a política não é nada, onde
o comando é absoluto e a lei desvanece-se, onde o público é rebatido pelo privado e o político prostra-se no doméstico.
Assim, os litígios públicos e os
debates colectivos são substituídos pelas intrigas palacianas e pelas querelas
familiares, conforme Blandine Barret-Kriegel[10].
A teorização contemporânea do despotismo deve-se sobretudo a
Montesquieu, no seu De l'Esprit des Lois
de 1748, onde o despotismo, constitui uma forma de regime político diversa da
monarquia e da república, onde um só, sem
lei e sem regra, tudo entraîne pela sua vontade e pelos seus caprichos (un seul
sans loi e sans règle, entraîne tout par sa volonté et ses caprices)[11]. Aqui, o princípio do regime,
diferentemente da honra para a
monarquia e da virtude, para a
república, constitui o medo.
Outra degenerescência dá-se na escravidão voluntária, onde o tirano apenas tem o poder que se lhe
dá, um poder que vem da volonté de servir
das multidões que ficam fascinadas e seduzidas por um só[12].
É que os escravos são
tão culpados quanto os tiranos. É difícil de dizer se a liberdade poderá
reprovar mais justamente aqueles que a atacam do que aqueles que a não defendem,
conforme as palavras de Beaumarchais.
Próxima desta escravidão temos aquela forma de cedência da
liberdade à segurança de que já falava Alexis de Tocqueville, quando assinalava
a eventual emergência de um poder
absoluto, pormenorizado, ordenado, previdente e doce[13]
provocado pela circunstância de sermos
permanentemente solicitados por duas tendências opostas: sentirmos a necessidade de sermos dirigidos e o desejo de continuarmos livres[14].
O despotismo surge assim através de novos aspectos, nomeadamente quando o soberano estende os braços para abarcar a sociedade inteira, e
cobre-a de uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes,
através da qual mesmo os espíritos mais originais e as almas mais fortes não
conseguirão romper para se distinguirem da multidão[15].
Surge assim uma servidão, ordenada, calma
e doce[16],
uma espécie de compromisso entre o
despotismo e a soberania do povo[17].
Vários autores na senda de La Psychologie des Foules (1895)
de Gustave Le Bon vieram alertar para a emergência de uma sociedade de massa. O que levou,
conforme as palavras de Fernando Pessoa, que a sociedade se tenha tornado mais
numa reunião de instintos do que num concurso de inteligências, porque,
segundo as palavras de Vilfredo Pareto (1848-1923), para agir sobre os homens, os raciocínios têm necessidade de
transformar-se em sentimentos[18].
Sigmund Freud (1856-1939) teorizou a psicologia das massas, salientando que o condutor das multidões é sempre uma incarnação do pai primitivo,
onde a multidão quer ser sempre dominada
por um poder ilimitado, estando ávida
de autoridade e com sede de submissão[19].
Ortega y Gasset (1883-1955), em A Rebelião das Massas, de 1930, vem dizer que o homem-massa como entidade anónima,
alia-se ao intervencionismo do Estado, também entendido como poder anónimo. Julius Evola refere a
existência de um Estado Multidão,
semelhante à antiga tirania popular, com um realismo
plebeu e uma existência inferior,
dessacralizada[20].
Nesta senda, os
aplicadores das teses de Freud à política, vêm teorizar uma degenerescência do
poder equivalente à cupidez de reinar,
de que falava Maquiavel, a libido
dominandi.
Uma outra forma de degenerescência é a da multidão solitária, de acordo com as
teses de David Riesman, The Lonely Crowd,
de 1950. Para ele, as relações do
indivíduo com o mundo exterior e com ele mesmo passam cada vez mais pelo
intermediário das comunicações de massa. Deste modo, as pessoas
heterodeterminadas (other-determined)
fazem a experiência dos acontecimentos políticos através de um écran de
palavras... Todos os heterodeterminados (o contrário dos
intra-determinados) têm em comum a
circunstância da atitude do indivíduo ser orientada pelos seus contemporâneos[21].
A estrutura do poder em vez de se assumir como uma hierarquia única, coroada por uma classe
dominante, foi substituída por uma pluralidade de grupos de pressão e de
interesse (veto groups) que, hoje, partilham o poder[22].
Os heterodeterminados passam assim a ser meros consumidores de produtos
oferecidos por uma série de grupos, pelo que em vez de uma pirâmide, o poder
aparece como um labirinto, fruto
tanto das evoluções económicas como do próprio processo cultural, dado que se
formam e forjam sujeitos cada vez mais fracos e mais influenciáveis, totalmente
dependentes das comunicações.
Os grupos de pressão deram origem a
uma estrutura de poder singularmente amorfa, onde é difícil estabelecer a
distinção entre o chefe e as tropas, entre aqueles que é preciso ajudar e
aqueles que é preciso combater, entre amigos e adversários[23]
Benjamin Constant chamava a atenção para a circunstância do
centralismo democrático destruir a variedade local em nome da construção do
Estado, quando os revolucionários para
construir o edifício começaram por pulverizar os materiais que deviam utilizar[24], esquecendo que a variedade é a organização; a uniformidade é o mecanismo. A variedade
é a vida; a uniformidade é a morte[25].Assim, em todos os
Estados onde se destruiu a variedade local, eis que um pequeno Estado forma-se no centro; na capital aglomeram-se todos os
interesses, vão agitar-se todas as ambições[26].
Na sequência desta atracção pelo centro, surge a tendência
para a uniformidade: é pena que não se
deitem abaixo todas as cidades para reconstrui-las segundo o mesmo plano,
nivelar as montanhas para que o terreno seja igual em todo o lado; é estranho
que não tenham ordenado a todos os habitantes para usar o mesmo fato, a fim de
que o senhor não reencontre mais a miscelânea irregular e de chocante variedade[27].
No caso da tirania
temos aquela forma de governo que não procura o consentimento nem a persuasão,
mas a opressão e a violência, como já dizia Platão. Trata-se daquele modelo que
segue as ideias de Xenofonte, o admirador de Esparta, que concebia, para
Atenas, um governo militar[28].
Foi a partir deste conceito que a escolástica medieval
distinguiu entre o tirano que não tem título e o tirano que o passa a ser pelo
modo como exerce o poder.
Com o absolutismo, atinge-se a forma do despotismo iluminado, o despotisme
éclairé dos enciclopedistas, todo ele cheio de boas intenções, desde a
proposta de Francis Bacon para a instauração de um governo da ciência, à perspectiva fisiocrática de um despotisme légale, que seria diferente
do mero despotisme arbitraire.
Qualitativamente diferente da tirania é a experiência
contemporânea do totalitarismo, como se manifestou no estalinismo, no nazismo e
no maoísmo, apesar de alguns antecedentes históricos, como a ditadura
teocrática de Calvino, o modelo inquisitorial da Contra-Reforma, a república dos santos de Cromwell ou o
terrorismo jacobino.
Segundo Carl J. Friedrich e Zbigniew Brzezinski, o
totalitarismo teria seis grandes características:
-uma ideologia oficial
entendida como corpo de doutrina que
abrange todos os aspectos vitais da existência humana, À qual todos os que
vivem nessa sociedade deve aderir, pelo menos, passivamente
-um único partido de massas dirigido
tipicamente por um homem e que é organizado
hierarquicamente e de forma oligárquica, acima ou totalmente ligado à
organização burocrática do governo
- a existência de um sistema
de controlo policial terrorista que é dirigido não só contra inimigos
declarados, mas também arbitrariamente para certas classes da população, com
uma polícia secreta que utiliza a psicologia científica;
-os meios de comunicação de massa estão sob monopólio quase completo
- a existência de situação idêntica no que diz respeito aos meios armados
- controlo e direcção
central de toda a economia[29]
Mais recentemente Giovanni Sartori, veio utilizar outro
modelo para a conceitualização do totalitarismo, fazendo nele imbricar as
degenerescências do autoritarismo e da ditadura[30]. Utilizando cada
uma das três categorias como modelos abstractos, marcados por determinadas
características, vem considerar que na realidade, os diversos regimes
degenerados vão pontuando, segundo vários critérios, numa dessas três
tipologias, conforme o quadro seguinte:
Critério
|
Totalitarismo
|
Autoritarismo
|
Ditadura Simples
|
Ideologia
|
Forte e totalística
|
Não totalística
|
Irrelevante ou fraca
|
Penetração do Estado
na sociedade civil
|
Extensiva
|
Modesta
|
Nenhuma
|
Coerção
|
Alta
|
Média
|
Média baixa
|
Independência do
subgrupo
|
Nenhuma
|
Limitada a grupos políticos
|
Permitida com excepções
|
Políticas face a
outros grupos
|
Destrutiva
|
Exclusivista
|
Absorção
|
Arbitrariedade
|
Ilimitada
|
Dentro de limites prévios
|
Errática
|
Centralismo do
partido
|
Essencial
|
Útil
|
Mínima ou nenhuma
|
Segundo o critério da ideologia, entendida como um sistema de
crenças idêntico ao de uma religião, uma interpretação substantiva do mundo ou
uma simples forma mentis, a gradação
passaria por um crescendo.
Quanto à penetração do Estado (aparelho de poder) na
sociedade civil, o totalitarismo seria aquele regime que destrói a separação
entre o público e o privado. Já não estaríamos perante o L'État c'est moi, do despotismo esclarecido, mas antes naquilo que
Trotski disse de Estaline: La Societé
c'est moi.
Mussolini, por exemplo, apesar de ter proclamado o tudo no Estado, nada fora do Estado, não
passou da retórica, dado que na Itália fascista continuaram a florescer vários
nichos de autonomia da sociedade civil..
O totalitarismo assumir-se-ia sempre como uma negação de uma
concepção pluralista da sociedade. Seria, pelo menos, a destruição da crença no valor do pluralismo.
Já quanto ao critério da coerção ou mobilização, Sartori
refere que a capacidade de mobilização tanto pode resultar da densidade
organizacional como do fervor ideológico, sublinhando que a concentração do poder (isto é, a não
separação dos poderes) não pode ser confundida com a respectiva centralização, da mesma forma como um
sistema monista não tem que ser monolítico.
A este respeito, se C. J. Friedrich colocava como um dos
elemento definidores do totalitarismo, um
sistema policial terrorista (terrorist police system), já Sartori considera
que o terror é contingente num sistema totalitário, não sendo uma
característica necessária, porque quando o controlo totalitário entrou na
rotina, o terror tornou-se supérfluo.
Quanto ao critério da arbitrariedade, Sartori define-o como o
exacto contrário da rule of law, do Estado de Direito.
Aceitando o essencial desta
perspectiva, acrescentaremos que são possíveis três concepções de totalidade
política e, consequentemente três modelos de totalitarismo.
No Estado fascista e, em certo
sentido, no absolutismo, é o Estado, qua
tale, que domina e forma a sociedade, suprimindo a liberdade desta;
No Estado soviético, surge o
Estado-Partido, primeiro, com Lenine, onde temos um partido totalitário visando a reconstrução total da sociedade,
depois, com Estaline, com um Estado
totalitário que subordinou totalmente a sociedade, e, finalmente, com
Brejnev, onde surge um Estado totalmente
estagnado, dominado por um partido totalitário corrupto[31]l.
Num terceiro modelo, como foi
praticado pelo nazismo, o Estado e a Sociedade já se reúnem numa unidade nova,
através de uma espécie de terceira força: o povo político formando um todo,
através de um movimento que
transforma o Estado num simples aparelho administrativo.
Na linha de Georges Bernanos, para quem o Estado Totalitário é menos uma causa do que um sintoma. Não é ele que
destrói a liberdade, pois organiza-se sobre as suas ruínas, eis que Vaclav Havel vem tentar
determinar as causas do totalitarismo, elencando as seguintes: a concepção
dominante da ciência moderna, o racionalismo, cientismo, a revolução industrial
e a revolução em geral enquanto fanatismo
da abstracção, o culto do consumo. Tudo, aliás, remontaria a Maquiavel o
primeiro a formular a teoria da política
como uma tecnologia racional do poder[32].
Assim,
se considera que os totalitarismos do Leste teriam sido mera expansão retroactiva dos frutos da
própria expansão do pensamento europeu ocidental[33].
Já no tocante aos efeitos do totalitarismo, já salienta que, depois do
estalinismo, ter-se-ia atingido um estádio de pós-totalitarismo que divergiria
profundamente das ditaduras clássicas. Se estas tinham sido localmente
restritas, já os modelos pós-totalitários a estariam dependentes de um bloco
liderado por uma superpotência. Se as ditaduras clássicas teriam constituído
meros acidentes sem raízes históricas, onde dominava o acaso, o arbitrário e a
improvisação, já o modelo pós-totalitário constituiria um mecanismo perfeito e
refinado de manipulação da sociedade. Enquanto, nas ditaduras clássicas haveria
o entusiasmo revolucionário dos heróis, eis que nos modelos pós-totalitários
seria marcante o cinzentismo de uma sociedade industrial de consumo,
esquecendo-se que se baseiam na autenticidade dos movimentos operários e
socialistas do século XIX e onde o poder político passou a deter o monopólio
dos meios de produção[34].
Na mesma linha do pós-totalitarismo
do regimes do leste europeu, importa salientar os regimes autoritários
anticomunistas que assumiram o modelo do Estado
de Segurança Nacional no tempo da guerra
fria, onde podem incluir-se alguns regimes sul-americanos das décadas de
sessenta e setenta, bem como a fase crepuscular do regime português da
Constituição de 1933, onde a chamada política se transformou numa espécie de
continuação da guerra civil por outros meios, instaurando-se um subsistema de
medo, comandado por um serviço de informações paramilitar que levou a política
interna a ser dominada pela política externa[35].
[5]BENJAMIN
CONSTANT, De la Liberté chez les Modernes,
Paris, Hachette, 1984, edição organizada por Marcel Gauchet, p. 172
[6]MAQUIAVEL, Il Principe, cap. VI, trad. port. de
Fernanda Pinto Rodrigues, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1972, p. 34
[7]Idem, p. 35
[8]Idem, p. 36
[9]Idem, ibidem
[11]MONTESQUIEU,
De l'Esprit des Lois, II, 1
[12]Veja-se
o clássico ETIENNE DE LA BOÉTIE (1530- 1563), Discours de la Servitude Volontaire[1548], Paris, Payot, 1976, com
posfácios de Pierre Clastres, Liberté,
Malencontre, Innommable, pp. 229-246 e Claude Lefort, Le Nom d'Un, pp. 247-307
[13]ALEXIS
DE TOCQUEVILLE, A Democracia na América,
trad. port, Lisboa, Estúdios Cor, 1972, p.432
[14]Idem,
p. 433
[15]Idem,
p. 433
[16]Idem,
p. 433
[17]Idem,
p.434
[18]Apud
o nosso Ensaio sobre o Problema do Estado, II, pp. 111-112
[19]Ver
JACQUELINE RUSS, Les Théories du Pouvoir,
Paris, Librairie Générale Française, 1992, p. 279
[20]JULIUS
EVOLA, Revolta Contra o Mundo Moderno,
trad. port., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, p. 418
[22]Idem,
p.279
[23]Idem,
p. 288
[24]Idem,
p. 147
[25]Idem,
p.151
[26]Idem,
p. 150
[27]Idem,
p.142
[28]Ver LEO STRAUSS, On Tyranny. Including Strauss-Kojève Correspondence, edição de Victor Gourevitch
e Michael S. Rooth, Nova Iorque, The Free Press, 1991, onde Strauss, analisando
a hipótese de Salazaar ser um bom tirano,
qualifica o regime português de então como pós-constitucional,
p. 188
[29]CARL J. FRIEDRICH e ZBIGNIEW BRZEZINSKI, Totalitarian Dictatorship and Autocracy,
Cambridge Mass., Harvard University Press, 1956, apud PAUL T. MASON, O Totalitarismo, trad. port., Lisboa,
1958
[30]GIOVANNI SARTORI, Totalitarianism,
Model mania and Learning from Error in Journal
of Theoretical Politics, 5 (1): 5-22, 1993, pp. 5-22
[31] ZBIGNIEW BRZEZINSKI, The Great
Failure. The Birth and Death of Communism in the Twentieth Century [1989],
Londres, Macdonald & Co., 1990, p. 41
[32]VACLAV
HAVEL; Essais Politiques, Paris,
Calmann-Lévy, 1989, p. 238
[33]Idem,
p. 234
[34]Idem,
pp. 68-72
[35]Para maiores
desenvolvimentos, ver o nosso Ensaio
sobre o Problema do Estado, II, pp. 180 ss., bem como JOSEPH COMBLIN, Le Pouvoir Militaire en Amérique Latine.
L'Idéologie de la Securité National, Paris, Ed. Jean-Pierre Delarge, 1977
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