sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A invenção do controlo do poder

A invenção do controlo do poder
Montesquieu, partindo dos princípios que todo o homem que tem poder sente inclinação para abusar dele, indo até onde encontra limites (c'est une expérience éternelle que toute himme qui a du pouvoir est porté à en abuser) e que, para que não se possa abusar do poder é necessário que, pela disposição das coisas, o poder trave o poder (le pouvoir arrête le pouvoir)[1], Montesquieu considerou não bastar que o poder fosse controlado apenas pelas leis, dado que estas sempre podem ser abolidas, como mostra a experiência dos conflitos entre as leis e o poder, onde este tem sempre saído vitorioso.
Assim visionou um sistema de pesos e contrapesos, tratando de limitar o poder no interior do próprio poder, onde para cada faculdade de estatuir (estatuer), o direito de ordenar por si mesmo ou de corrigir aquilo que foi ordenado por outro, se deveria opor uma faculdade de vetar ou de impedir (empêcher), o direito de tornar nula uma resolução tomada por qualquer outro[2].
Deste modo, considerava que, para formar um governo moderado, é preciso combinar os poderes (puissances), regulá-los, temperá-los [3]

Dentro da mesma preocupação, Bertrand de Jouvenel considera que o instinto de crescimento é próprio do Poder, pertencendo à respectiva substância. Tal processo actuaria pelo nivelamento, referindo um ácido estatal que decompõe as moléculas aristocráticas[4].
É que o poder, no seu crescimento, tem como vítimas predestinadas e como opositores naturais poderosos, os chefes de fila, aqueles que exercem uma autoridade e possuem um poderio na sociedade.
A esse processo chama estatocracia, referindo uma tradicional aliança entre o centro e a plebe contra os corpos intermédios dotados de autoridade: o Estado encontra nos plebeus os servidores que o reforçam, os plebeus encontram no Estado o senhor que os eleva[5].
Nesta linha também Moisei Ostrogorski dizia que a propriedade natural de todo o poder consiste em concentrar-se[6].
O nosso Alexandre Herculano, por seu lado, falava no despotismo dos césares de multidões.
Tocqueville referia o despotismo democrático e a tirania colectiva, considerados como o governo de um único que, à distância, tem sempre por efeito inevitável tornar os homens semelhantes entre si e mutuamente indiferentes à sua sorte.
O mesmo Jouvenel, por seu lado, refere que os governos concedem benesses ao povo para, com a sua ajuda, arrebatarem a influência aos agrupamentos sociais secundários, escondendo a sede de mando sob a aparência de protecção que manifestam estar dispostos a conceder[7].
Weber referia a democracia de massa, o aparecimento de um poder anónimo. Para ele a organização burocrática chegou habitualmente ao poder na base do nivelamento das diferenças económicas e sociais ... a burocracia acompanha inevitavelmente a moderna democracia de massa, em contraste com o Governo autónomo e democrático das pequenas unidades homogéneas[8].
Já para Gustave le Bon, as multidões são tão autoritárias como intolerantes.... sempre dispostas à revolta contra uma autoridade fraca, a multidão curva-se com servilismo diante de uma autoridade forte ... não é a necessidade de liberdade, mas a de servidão que domina sempre a alma das multidões. A sua sede de obediência fá-las submeter-se instintivamente a quem se declara seu senhor [9].
O concentracionarismo se tem como aliado o nivelamento atomicizador, que propicia a unidimensionalização, já teme qualquer forma de aristocracia, nomeadamente a do individualismo filosófico.
O individualismo, nomeadamente o dos intelectuais livres – por oposição aos intelectuais orgânicos ou bem pensantes e à intelligentzia – é o individualismo daqueles que têm coragem de estar em minoria
O concentracionarismo tende para a unidimensionalização geométrica do objecto que comanda. Prefere os consumidores de uma abstracção; prefere eleitores a cidadãos que professem o direito à diferença; prefere ter como bem comum uma abstracção desde a defesa da nação ao desenvolvimento económico.

A política tem o seu princípio e os seus princípios na polis grega, essa forma de organização dos homens, onde, no dizer de Fenélon, tudo dependia do povo, mas onde o povo dependia da palavra. Foi aí que começou a praticar-se e a teorizar-se a democracia, uma unidade de teoria e de acção que concebia a polis como um conjunto de cidadãos, de homens livres e iguais, de homens dotados de isonomia, como o dever e o direito, de através da palavra, participar nas decisões da comunidade, pela isegoria.
E talvez não haja política sem aquele sistema que, segundo as actuais palavras de João Paulo II, assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno[10], sem aquele sistema democrático, onde, se vale mais o experimentá-lo do que julgá-lo, não deixa de ser possível o julgue-o quem não puder experimentá-lo.
Fiéis ao discurso fundador de Péricles, também nos apetece proclamar que não há política sem democracia, sem esse modo de organizar os homens que, conforme o discurso fundador de Péricles, tem como fim a utilidade do maior número e não a de uma minoria. Aquele regime onde as dignidades não são distribuídas segundo a fortuna de cada um e onde as funções nunca têm uma longa duração; todos os cidadãos são chamados a julgar nos tribunais; a decisão de todas as coisas depende da assembleia geral dos cidadãos[11].
Acontece apenas, como assinalava Rousseau, que a tomar o termo no rigor da acepção, nunca existiu a verdadeira democracia, e nunca existirá. É contra a ordem natural que o grande número governe e que o pequeno seja governado. Não se pode conceber que o povo permaneça constantemente junto para se ocupar dos negócios públicos, e vê-se facilmente que não poderia estabelecer comissões para isso sem mudar a forma de administração[12].
A democracia, conforme salienta o mesmo Rousseau, é um governo tão perfeito que não convém aos homens, pelo que se houvesse um povo de deuses, governar-se-ia democraticamente[13].
Com efeito, não há nenhum defensor da democracia que não concorde com a plurissecular crítica dos detractores da democracia, reconhecendo que, na prática, a teoria é outra.
A democracia não passa de um padrão de um ideal que só se pode concretizar-se quando os homens deixarem de ser humanos. Como me foi dado ler num artigo de José Régio, publicado por ocasião da campanha eleitoral de 1969, a democracia é tão incumprida quanto aqueles dois princípios sociais do cristianismo que proclamam a necessidade do amar o teu próximo como a ti mesmo e do não faças ao outro o que não queres que te façam a ti. É que eles não deixam de ser o bem, apesar de, há dois mil anos, não serem praticados, mesmo entre os cristãos. A saúde não deixa de ser um bem, mesmo que só haja doentes no mundo.
Conforme ensina Cabral de Moncada, a democracia tanto é uma ideia pura, situada a nível da filosofia, como também se traduz nos valores que a ideia pretende servir, situados a nível da cultura, níveis esses bem diversos do acidental das realizações históricas da democracia[14]. Também António Sérgio distinguia o sistema e ideias da democracia, considerado eterno porque deriva da estrutura da consciência humana, esse governo do povo pelo povo, uma vez que o eduquem para se governar a si mesmo, dos órgãos da democracia, dado que estes estão para aquele como os meios estão para os fins[15]
A prática correspondente ao ideal da democracia, a forma de vida em comum de homens concretos, correspondente a essa concepção do mundo e da vida, a democracia que é possível, que é susceptível de ser vivida na cidade dos homens, não passa daquilo que Robert Dahl qualifica como poliarquia.
Uma ordem política que, segundo Dahl, exige sete condições: cargos electivos para o controlo das decisões políticas (elected officials); eleições livres, periódicas e imparciais (free and fair elections); sufrágio universal (inclusive suffrage); direito a ocupar cargos públicos (right to run for office); liberdade de expressão (freedom of expression); existência e protecção, dada por lei, da variedade de fontes de informação (alternative information); direito a constituir associações e organizações autónomas, partidos e grupos de interesse (associational autonomy)[16].
Por seu lado, Bernard Crick considera que só há política quando se atinge um sistema político estável marcado pelas seguintes características: uma sociedade que reconheça ser complexa, composta de indivíduos e onde existam instituições representativas; onde a elite governante não exclua a participação política de outras grupos; onde exista uma classe média considerável; onde o governo exerça uma actividade predominantemente secular; onde o conflito social seja admitido como normal e institucionalizado; onde o crescimento económico não crie extremos de riqueza; onde a sociedade possa defender-se de forma normal, pelos meios diplomáticos e militares, mas onde também possa controlar os seus militares; onde haja uma tradição de especulação política, levando a que a elite governante tenha o desejo de actuar politicamente[17]
Uma poliarquia que se aproxima bastante da clássica procura do regime misto e do governo moderado, exigindo, conforme Alain, um tipo de exercício do poder diferente da decisão de um só ou do modelo oligárquico, um poder que a Ciência Política não definiu e a que eu chamo o Controlador, que não é outra coisa senão o poder, continuadamente efeicaz, de depor os Reis e os Especialistas de um momento para o outro, se não conduzirem os negócios segundo o interesse do maior número... A Democracia será, neste sentido, um esforço perpétuo dos governados contra os abusos do poder. E como há, num indivíduo são, nutrição, eliminação, reprodução, num justo equilíbrio, haverá assim numa sociedade sã: Monarquia, Oligarquia, Democracia, num justo equilíbrio[18].
Por outras palavras, não há política sem cidadania, sem a procura da participação na decisão, sem que tente eliminar-se a distância que tende a separar o governante e o governado.
Não há política com escravos nem com súbditos, porque a polis não passa de um conjunto de cidadãos, de mera forma dada a determinada matéria, a realidade substancial dos indivíduos.
Daí a inevitável falta de autenticidade de todas as democracias antigas e modernas, passadas actuais, dada a tendência para a indiferença e para a ignorância de grande parte dos formais cidadãos
Com efeito, se uma qualquer democracia impõe tanto uma liderança governativa como a participação dos cidadãos nas decisões, eis que essas duas exigências são sempre acompanhadas pelas degenerescências do elitismo, por um lado, e pela indiferença ou apatia das massas, por outro.
A necessidade de governabilidade e de liderança tende para o estabelecimento de uma elite no topo da pirâmide do poder, muitas vezes marcada pelo facciosismo da partidocracia, pelo burocratismo e pelo fenómeno da compra do poder ou da corrupção.
Por seu lado, a necessidade da participação pode levar a que uma massa ignorante seja manipulada por demagogos ou se mantenha em regime de indiferença face aos negócios públicos.
A polis grega está de facto nas nossas origens. Ela está nos nossos começos e volta sempre a aparecer nos nossos recomeços. Porque a política pode ser expropriada por poderes não políticos, por muitos pretensos fins da história do político, a partir dos quais temos de nascer de novo, procurando regenerar o que degenerou.
Porque o homem vive sempre em eterna revolução, nesse giro de alguém sobre si mesmo, praticando o futuro como o eterno retorno, na procura do que é melhor.
Porque o fim da história que podemos viver é sempre um regresso da história, essa consciência de que somos finitos e que sempre nos estimula na procura do infinito.
Se sempre estivemos à beira de fundamentalismos, proclamando pretensos fins da história, eis que, como salienta o filósofo checo Jan Patocka, o segredo da nossa existência europeia sempre foi a falta de uma qualquer certeza quanto ao sentido da história[19]. Sempre reagimos, em nome da liberdade contra os que pensaram poder comandar o sentido da história, por suporem deter o segredo do bem e do mal e que, com a inquisições e juntas de providência literárias, trataram de organizar o index ou o compêndio histórico, esse exacto contrário da tolerância e do relativismo.
É que o mal apenas reside no temperamento dogmático, e não nas características especiais do dogma adoptado[20].
Por outras palavras, não há política fora de nós mesmos, não há política que não se insira na luta do homem consigo mesmo. Porque o bem e o mal não estão fora de nós, não radicam em sítios diferentes.
Foi de facto há vinte e cinco séculos, no período que vai de 499 a.C. a 322 a.C. que se deu a invenção da política.




[1]MONTESQUIEU, De l'Esprit des Lois, XI, 4
[2]Idem,  XI, 6
[3]Idem,  V, 14
[4]BERTRAND DE JOUVENEL, Du Pouvoir. Histoire Générale de sa Croissance, Paris, Hachette, 1972, p. 255
[5]Idem, p. 289
[6]MOISEI OSTROGORSKI, La Démocratie et les Partis Politiques, Paris,  Seuil, 1979
[7]BERTRAND DE JOUVENEL, Du Pouvoir, cit., p. 245
[8]MAX WEBER, Ensaios de Sociologia, organização e introdução de H. H. Gerth e C. Wright Mills, trad. port., Rio de Janeiro, Zahar, 1971, p. 260
[9]GUSTAVE LE BON, La Psychologie des Foules, 1910
[10] JOÃO PAULO II, Centesimus Annus, V, 46, trad. port., Lisboa, Secretariado Geral do Episcopado/ Rei dos Livros, 1991, p. 100
[11]ADRIANO MOREIRA, O Ideal Democrático. O Discurso de Péricles, in Legado Político do Ocidente, cit.
[12]JEAN-JACQUES ROUSSEAU, Du Contrat Social, Livro III, Cap. IV, p. 69
[13]Idem, Livro III, Cap. IV, p. 70
[14]LUÍS CABRAL DE MONCADA, Problemas de Filosofia Política, cit., p. 53
[15]ANTÓNIO SÉRGIO, Democracia. Diálogos de Doutrina Democrática. Alocução aos Socialistas. Cartas ao Terceiro Homem, Lisboa, Sá da Costa, 1974, edição crítica, incluída nas Obras Completas, p. 7
[16]ROBERT DAHL, Democracy and Its Critics, Yale University Press, 1989, p. 221. Sobre a matéria, ver também SAMUEL P. HUNTINGTON, The Third Wave. Democratization in the Late Twentieth Century, University of Oklahoma Press, 1993, onde o começo da terceira onda da democracia, entre 1974 e 1990, é colocado em Portugal, tanto no 25 de Abril de 1974, como no 25 de Novembro de 1975, onde Kerensky ganhou e a democracia venceu, com Mário Soares a servir de anti-Kerensky e Ramalho Eanes de anti-Lenine. Op. cit., p. 5.
[17] BERNARD CRICK, Em Defesa da Política, trad. port., cit., pp. 123-124
[18]ALAIN, Propos sur les Pouvoirs, artigo de 1910, Paris, Gallimard, 1985, p. 214
[19]JAN PATOCKA, Essais Hérétiques sur la Philosophie de l'Histoire, Paris, Verdier, 1981
[20]BERTRAND RUSSELL, Realidade e Ficção, p. 322

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